Quando falamos de arte e cultura brasileira, falamos de uma história riquíssima que começa a 50 mil anos atrás, na Serra da Capivara e vem até os dias atuais, com artistas/empresas e suas sólidas estratégias de marketing. De glórias, belezas e diversidade como nenhuma outra no planeta, as manifestações culturais brasileiras assumem um papel central em uma sociedade com tantas necessidades. E como cuidamos dessa cultura? Como cuidamos da nossa arte? Como colaboramos para que o futuro artístico do país seja tão rico e substancial quanto foi nesses séculos (ou milênios) de história? Como garantimos que a arte fará o seu papel na vida de milhões de brasileiros e não apenas a um seleto grupo? E, no final das contas, pra que serve o Descontexto nisso tudo?
Arte ou Cultura?
O historiador de arte Ernst Gombrich, em seu mais famoso trabalho “A História da Arte”, definiu o conceito de arte da maneira talvez mais plausível vista até hoje:
“Não existe Arte, existem artistas”.
A Arte ainda gravita sobre um universo complexo, a Cultura. A nossa nação possui até um Ministério para a Cultura, que engloba a Arte. Definir o que é Cultura é tão complicado quanto definir o que é arte. Talvez o mais plausível seja a concepção do antropólogo norte-americano Clifford Greetz. Segundo Greetz, o conceito de cultura, “denota um padrão, historicamente transmitido, de significados incorporados em símbolos, um sistema de conceitos herdados que são expressados em formas simbólicas pelas quais o homem se comunica, se perpetua, e desenvolve sua sabedoria e suas atitudes perante a vida.” (“The Interpretation of Cultures”, Clifford Greetz). Esses símbolos, diz Greetz, podem ser um objeto, um ato, um evento, uma qualidade ou uma relação, que servem como veículo para uma concepção. A Arte, nós ousamos afirmar, pode se encontrar em todos esses símbolos.
Muito se fala sobre a força da cultura brasileira, que engloba desde de símbolos como o candomblé até o futebol, passando pelo pãozinho de padaria aos bloquinhos de carnaval. A “criatividade do brasileiro” é conceito quase unânime. A Arte, em suas camadas criativas e intelectuais, se encontra presente no dia-a-dia do brasileiro, mesmo que sutilmente. O graffiti nos muros, o artesanato nas prateleiras, o dançar nas farras noturnas. O brasileiro está envolto pela Arte e sequer percebe isso, ou então percebe, mas é tão enraizado que não se dá conta de que aquilo é Arte. Ainda assim, como uma faca de dois gumes, o cidadão de maneira geral não consome com tanta frequência uma parcela importantíssima da Arte.
Para tentar conceber alguma diferenciação mais substancial entre arte e cultura, podemos adotar um conceito criado pelo cineasta francês Jean-Luc Goddard:
A cultura é a regra, a Arte é a exceção.
Isso significa, à grosso modo, atribuir à cultura todas as nossas tradições, nossos costumes, nossas canções, nossos quadros, nossos livros e todas as referências coletivas que temos. Indo além, podemos entender que essa cultura tem papéis fundamentais na sociedade. É a partir dessa cultura que tiramos nossos valores, nossa história e nossas características mais latentes. Sem cultura perdemos nossos referenciais e tudo o que construímos ao longo dos séculos até hoje, sejam elas boas ou ruins.
O Papel da Arte
Porém, à Arte cabe outras funções. Cabe ir além. Arte está contida na cultura, mas ela possui um papel diferente. A Arte é a exceção, por isso excede, sai da caminho, transborda, cruza e cria. Com isso, provoca, transgride e, sobretudo, expande.
Machado de Assis criou marcos na sociedade brasileira. Suas obras abriram fissuras na psicologia humana, possibilitando aos seus leitores novas reflexões sobre a natureza humana. Isso acontece toda vez que um livro seu é aberto, seja numa tese de doutorado ou num estudo para o vestibular. Não bastando apenas os benefícios da leitura de seus livros, Machado de Assis generosamente e genialmente deixou legados imprescindíveis:
- Orgulhou o povo brasileiro ao colocar o Brasil no mapa das grandes narrativas e da literatura;
- Criou a mais importante instituição literária do país, a Academia Brasileira de Letras;
- E como não se bastasse, provou que competência, talento e arte são para todos. Filho de lavadeira e pintor, pardo, e o melhor escritor brasileiro (por nossa conta), Machado de Assis empodera cada brasileiro.
Assim como ele, quantos artistas não quebraram barreiras, fizeram o impossível ser possível e formaram bases melhores para o povo brasileiro? Não são poucos.
Bases da Arte Brasileira
Em 1822, o Brasil desvencilhava-se da colonização portuguesa e começava o processo que culminaria na República que hoje nos encontramos – mesmo que ainda com grande imaturidade. Em 1922, os fundadores da arte moderna tupiniquim como Mário de Andrade, Anita Malfatti, Oswald de Andrade, e tantos outros, realizaram na cidade de São Paulo um evento que estabeleceria a arte moderna brasileira e pavimentaria o rumo da arte no Brasil, então pouco madura. A imprescindível semana de arte moderna.
Em 2022, daqui a quatro anos, a arte brasileira atingirá uma marca histórica: os 100 anos da semana de arte moderna de 1922 e 200 anos de independência. Em todos esses anos, o que desenvolvemos?
E antes mesmo, na chegada dos europeus no lado tupiniquim da América, muitos povos indígenas caminhavam por essas bandas e criaram uma cultura própria, uma arte única em comparação com outras populações no continente.
No campo da história nacional, houve crises, guerras, golpes, ditaduras, revoltas, greves e, de vez em quando, vitórias. Houve também ilustres visitas de portugueses, holandeses, ingleses, de diversos povos da África, de italianos, de alemães, de japoneses, de ucranianos, de poloneses, de haitianos, de sírios e de muitos outros povos que, por vários motivos, escolhem chamar aqui de lar.
E nesse cenário a arte brasileira se imprime. Na mistura de povos e num mundo globalizado surgem “Bachianas Brasileiras“. Na luta por um Brasil mais livre surge um “Comportamento Geral“. E na própria brasilidade, tantas e quantas “Gabrielas, cravos e canelas“? Reflexão, inspiração, representação, beleza, originalidade: a arte brasileira não tem limites.
Se qualidade e pluralidade não limita a arte brasileira, ela consegue fazer seu papel dentro uma sociedade com mais de 200 milhões de pessoas? Ao que tudo indica, não.
Espaço da Cultura no Brasil
Segundo estudo conduzido pela professora da ESPM, Gisele Jordão, para o SESC, apenas 10% da população brasileira consome arte com frequência. A pesquisa conduzida pela professora Jordão, levou em consideração quatro tipos de comportamento de consumo de arte: os “não consumidores”, aqueles que consomem cultura muito abaixo da população e foi levado em consideração nos seus dados o consumo de eventos religiosos e de televisão; os “consumidores de cinema”, aquele grupo que vai ao cinema com frequência, mas quase que só ao cinema; “consumidor de festas”, aquele que frequenta festas tradicionais, como carnaval e festa junina; e o “praticante cultural”, justamente esses 10% a quem me refiro no início do parágrafo, que consomem outras atividades culturais como teatro, musicais e também frequentam feiras de artesanato e livrarias.
Analisamos pesquisas sobre os consumos culturais de diferentes países também. Não há sistema determinado para analisar esses dados. Primeiro porque existe uma diferença justamente no conceito de Arte, que pode englobar somente as artes clássicas, e de Cultura, que pode englobar atividades religiosas e festas tradicionais. Por essa razão, a comparação é, de fato, um pouco grosseira. Mas como é um campo pouco aprofundado no Brasil, o estudo da professora Jordão foi o que foi levado em consideração para esse edital.
Nos Estados Unidos, um dos países que mais se consome Arte no mundo, uma pesquisa de 2012, realizada pela National Endowment for the Arts, uma instituição pública, levou-se em consideração que das artes “principais”, ou seja, jazz, música clássica, ópera, musicais, teatro, balé e visitas à um museu de arte ou galeria. O resultado foi de que 33.4% da população americana esteve em pelo menos uma das atividades, uma vez, em um espaço de 12 meses.
Na Argentina, de acordo com a “Encuesta Nacional de Consumos Culturales”, organizada pelo Sistema de Informacion Cultural de Argentina, realizada em 2016, chegou-se à conclusão de que apenas 15% consumiu uma das formas artísticas principais, ao menos uma vez em um espaço de 12 meses.
O Brasil, proporcionalmente, consome um terço do que consome os Estados Unidos e 5% a menos do que consomem os vizinhos argentinos, cujo PIB é um terço do PIB brasileiro.
E para piorar, o acesso à Arte no nosso país ainda é caro. Um simples livro se torna objeto de luxo nas casas de muitos brasileiros. Vamos partir do princípio que metade da população brasileira recebe menos de um salário mínimo, por volta de R$ 747. O valor de um ingresso de cinema, em média, é R$ 28. Se você quiser comprar o novo livro do Asterix, você gastará R$ 8,95 se comprar na Europa e R$ 17,00 se comprar no Brasil, isso de acordo com cálculos feitos em 2016. No final de semana, uma opção de programa cultura diferente é ir ao teatro. Em média, o valor do ingresso do teatro em São Paulo é R$ 40. Por fim, ir à um show no Brasil também é caro. Se você quisesse ir ao show do ex-Beatle Paul McCartney em Santa Catarina, você teria que desembolsar R$ 391, 44% do salário mínimo quando esse evento foi realizado em 2013. Isso porque estamos falando do ingresso mais barato deste show. Temos a sorte que a maioria das exposições de artes visuais são de graça no país, mas se formos a todos esses eventos citados, gastaríamos um montante de R$ 476. Ou seja, 50% da população brasileira gastaria 63% do seu salário em cultura no Brasil hoje. E por que isso acontece?
São muitas as causas para a Arte ser cara em nosso país, cada setor tem suas causas próprias, mas uma que é comum a todos é bem simples: o Governo. Por mais que muitos são os esforços feitos pelas secretarias e Ministério da Cultura para que a população tenha acesso à Arte, são poucos os incentivos para artistas, locais culturais, produtoras, editoras e muitos aqueles que criam Arte. Por mais que o brasileiro consiga dar o seu jeito, comprando livros usados, aproveitar promoções de ingressos, a barreira da burocracia ainda é um grande problema no Brasil. Qualquer um de nós em algum momento vai reclamar sobre isso em uma mesa de bar com os amigos. Mas o impacto que esse obstáculo tem na produção de arte no país é incalculável.
O que Fazer?
Olhando por essa perspectiva e observando o que é divulgado nas grandes mídias, o cenário tende a homogeneidade estética e artística. Em busca de público e notoriedade, artistas e produtores podem tender a ir a um lugar comum e ao que dá “resultado”. E é justamente aí que as diversas expressões artísticas param de desempenhar seus papéis: desafiar as pessoas a saírem da zona de conforto, a se auto observarem e olharem a sua volta com um viés crítico, entre tantos outros benefícios.
Se existem tantas obras no Brasil e no mundo capazes de cumprir os papéis nobres da arte e o consumo de expressões artísticas está abaixo do esperado, o que falta para, porcento a porcento, conseguirmos elevar os índices de consumo de arte? Só conseguimos pensar em uma solução: educando.
Descontextualizando
A constatação de que o consumo de arte no Brasil está baixo e existe pouco conteúdo realmente educativo, informativo e aprofundado sobre as diversas disciplinas artísticas na internet brasileira fez com que não sobrasse outra opção: o Descontexto.
A descontextualização de objetos é um recurso artístico ainda explorado contemporaneamente, apesar de ter sido popularizada no começo do século XX, por Marcel Duchamp. Ao colocar objetos (muitas vezes cotidianos) em outras situações e circunstâncias diferentes, os objetos se descontextualizam, conquistando novos significados. O objeto adquire outro sentido, vira um símbolo para outra coisa.
O público que não está acostumado com esse tipo de recurso artístico acaba muitas vezes não tendo referências para fazer outros tipos de associação com o objeto. Afinal, quem tem obrigação de “adivinhar” porque um sujeito colocou um urinário no museu? Justamente por falta de instrução, não se entende que não precisa adivinhar nada. Muito pelo contrário.
Mais do que uma afirmação, a arte também é um ponto de interrogação onde cada um é convidado a refletir com a própria vida as obras de arte, o que elas transmitem e o que ela vai significar na vida de cada um. Dessa forma, a arte acaba sendo algo aberto, democrático e uma experiência cada vez mais rica. Basta entendermos o quão generosa ela pode ser. Com a arte somos livres. E cada vez que aprendemos mais sobre arte, mais livres ficamos, pois conseguimos dialogar e sentir melhor o que a técnica dos artistas tem a nos contar.
Descontexto: Uma Missão
Sendo assim, o site Descontexto é um convite para recontextualizar o consumo de arte no Brasil, enriquecer a percepção artística e para compartilharmos mutuamente o que temos encontrado pela arte e cultura do mundo.
E é por isso que Chris Goldenbaum e Fabio Ribs começaram esse projeto. Ambos são formados em Cinema e vivem na espiral da produção e do consumo artístico, sendo muitas vezes puxados para universos que se afastam das nossas paixões, como o marketing digital e o jornalismo político. Buscamos uma forma de trocar com o público aquilo que nós amamos: a arte. Decidimos então iniciar um portal de informações e conhecimento de Arte e Cultura, o Descontexto. A missão é simples: dialogar com os que já consomem as diversas expressões artísticas e ainda trazer mais adeptos ao “dark side” da cultura, a Arte.
Contando com a honrosa companhia do mestre em Filosofia do Direito e Ciências do Estado pela UFMG, Bernardo Supranzetti, e com o iluminado da crítica cinematográfica e da música popular, Junior Cândido, lançamos o Descontexto. Estamos prontos para crescer junto com ele, para aprendermos junto com vocês e para que a sensibilidade e a força do olhar artístico faça desse país um lugar mais caloroso.
Se você já sabe o que um mictório está fazendo no museu, fica com a gente para descobrirmos outros mictórios. Se ainda não sabe, talvez esse mictório possa transforma sua vida, assim como transforma a nossa todo dia. Vamos aprender juntos?