Precisamos falar de Donald Glover. Não é sempre que surgem artistas tão plurais no meio artístico e é por esse motivo que precisamos falar dele. Muitos o conhecem por aquela série engraçada, por uma ponta naquele filme de super-herói ou por aquele CD com a capa esquisita. Mas por que ele merece uma pauta inteira nesse site?
Não é apenas porque Donald Glover tem 21 prêmios em seu currículo, dentre eles um Grammy, dois Emmys e dois Globos de Ouro com apenas 34 anos. Seus prêmios é apenas uma das evidências de que o que ele produz é excelente.
Para entendermos quem ele é podemos começar pela seu artigo na Wikipedia em inglês: Donald Glover é um ator, roteirista, diretor, comediante e produtor americano, assim como cantor vencedor do Grammy e rapper conhecido pelo seu nome artístico de Childish Gambino, e como DJ, ele faz shows com sob outro nome artístico mcDJ.
Por isso o chamei de artista plural.
De Donald Glover para Childish Gambino
Donald Glover começou sua carreira artística na própria universidade, a New York University, em um grupo que produz esquetes na internet conhecido como “Derrick Comedy”. Porém, começou a chamar atenção da mídia quando foi contratado por Tina Fey, atriz conhecida por “Saturday Night Live” e “30 Rock” para ser roteirista desta última com apenas 23 anos de idade.
Flertando sempre com a comédia, ficou mais conhecido pelo público no seu papel como Troy Barnes na aclamada série de comédia “Community”, criada por Dan Harmon, hoje cultuado por muitos por ser também criador da série animada “Rick and Morty”.
2006 foi o ano em que Glover teve a chance de ser roteirista de 30 Rock e em 2008 lançou seu primeiro Mixtape, “Sick Boi” sob o nome artístico de Childish Gambino e a partir desse momento sua carreira nas telas e com a música começam a se misturar e ele se torna um artista que muito produz arte, seja escrevendo, atuando, produzindo ou cantando.
Para entender melhor suas origens musicais, voltamos para esse nome artístico que no mínimo soa um pouco diferente aos nossos ouvidos. Childish Gambino foi um nome criado por um gerador de nomes do Wu-Tang Clan. Para quem quiser saber como ficaria o seu nome, segue o mesmo link que Donald Glover usou lá em 2002: http://www.mess.be/inickgenwuname.php
Wu-Tang Clan é um grupo de hip-hop americano composto por diversos rappers, entre eles RZA, que já participou de trilhas sonoras de filmes como “Kill Bill” e “Django” do Tarantino, “Círculo de Fogo”, “13º Distrito”, “Ligeiramente Grávidos” e muitos outros filmes.
Em uma entrevista recente dada por Donald Glover ao “Late Show com Stephen Colbert”, lhe é perguntado da razão dele fazer tantas coisas em diversas áreas e a resposta é simples: Curiosidade. Um outro ponto a se observar é o jeito mais reservado e quase tímido que ele tem nesse tipo de entrevista. Algo que é completamente distante do que vemos nos palcos e nas telas. Para ver na íntegra a entrevista em inglês, aqui está ela:
Gambino
Ouvi toda a discografia do Childish Gambino e ela é no mínimo interessante. A maioria das músicas são sobre sua própria vida e carreira, falando muitas vezes da realidade do negro norte-americano na forma do mais puro e honesto rap. Mas é perceptível a sua evolução como artista ao ouvir os álbuns na ordem de lançamento deles. Se pegarmos suas mixtapes, percebe-se que suas primeiras é quase uma coletânea de músicas de sua autoria. Lá pelo meio da sua produção começam a ter alguns elementos que diferem a sua produção de outras no mercado fonográfico. Pegaremos como exemplo disso a mixtape “I Am Just a Rapper”, no qual quase todas as músicas têm a estrofe “I am just a rapper”. Porém são nos álbuns de estúdio que esta evolução fica evidente, justamente porque eles foram produzidos em momentos diferentes da sua carreira.
O primeiro CD, “Camp”, foi lançado em 2011, o segundo, “Because the Internet”, lançado em 2013 e o último, “‘Awaken, My Love!’”, lançado em 2016. Nesse intervalo entre cada álbum foram produzidos mixtapes e EPs, ou seja, é como se cada álbum fosse o marco dessa evolução musical do Childish Gambino. Selecionei uma música de cada CD para vocês sentirem esse caminhar musical de Glover:
A primeira música é “Bonfire”, do “Camp”:
Podemos ver não apenas do clipe, mas também da música, que esse é um rap que fala sobre a sua própria música e sobre o rap norte-americano. Além disso, ela possui os traços típicos desse gênero musical, algo que é bem presente em todo o CD. Passando para a próxima música, temos “3005” do “Because the Internet”:
Esse é um CD muito interessante. Dividido em “atos”, o álbum tem diversos “capítulos”, cada um com a sua característica, mas todos evidenciando essa mistura do rap com outros estilos musicais e já falando mais da vida pessoal do próprio Gambino. Além disso, nesse CD já tem mais participações de outros artistas do que em “Camp”.
Indo para o álbum mais recente, percebemos que esse é o ponto máximo de evolução, pelo menos até agora. Esse é um CD que tem uma estrutura similar ao anterior, mas não divididos em atos ou capítulos, mas ao ouvir percebemos uma certa trajetória das músicas, que levam o ouvinte de um ponto ao outro.
Vamos analisar agora sobre o quão brilhante é “‘Awaken, My Love!”” e a sua música principal, “Redbone”. Primeiro ouça ela, depois continue a leitura:
Ao ouvir pela primeira vez essa música a pergunta foi: será essa a voz do Childish Gambino? Será esse na verdade a voz do sucessor do Prince? Ouvimos uma música que lembra muito as antigas do Funkadelic, algo totalmente inesperado dado tudo que Gambino tinha produzido até então. Essa música é aquele dever de casa bem feito, quando você recebia a nota 10 com a estrelhinha da professora. É muito bem produzida, todos os instrumentos entrando em um timing harmônico e que nos remete às músicas dos anos 70 com uma mistura de século XXI. Ainda temos uma letra espetacular e uma voz que salta aos ouvidos.
Inclusive, o próprio título da música já significa muito. “Redbone” é um termo mais comum no sul dos Estados Unidos, região onde Glover foi criado. Em termos mais simples, significa um indivíduo ou uma cultura multirracial, em termos mais complexos é necessário voltar à compra da Louisiana em 1803, época que surgiu o termo de forma pejorativa, já que essas pessoas não eram consideradas nem brancas e nem negras.
Essa sensação de meio termo não é apenas no título, mas também na sua posição no CD, estando exatamente no meio, sendo a faixa de número 6 em um álbum com 11 músicas, ou seja, são 5 músicas antes e depois de “Redbone”. E percebemos que as cinco primeiras músicas são bem diferentes das cinco últimas. “Riot”, a música anterior a “Redbone” tem um estilo que lembra bem ao funk norte-americano das antigas, enquanto que “California”, a música seguinte à “Redbone”, já vai para um lado mais psicodélico, chega a ser até estranho, mas a música fica grudada na cabeça.
Além disso, a própria letra de “Redbone” dá uma sensação de ida e vinda sobre um suposto caso de adultério. E o refrão nos alerta: “Stay woke”. Se formos traduzir para o português seria um aviso para estarmos alerta. Este aviso também tem muita conexão com o que os Estados Unidos estavam vivendo na época que a música estava sendo produzida: diversos assassinatos não justificados por parte da polícia contra a comunidade negra norte-americana. Talvez seja esse também o motivo que Jordan Peele usou a canção para abrir o longa “Get Out!”, no Brasil, “Corra!”.
A música se tornou um viral algum tempo depois do lançamento do seu single, podemos comprovar isso vendo o número de visualizações que tem a música no YouTube, chegando próxima dos 200 milhões. Por causa desta música que muitos conheceram a carreira musical de Donald Glover e foi também por ela que ele recebeu o Grammy de Melhor Performance de R&B Tradicional no começo 2018.
Glover
Voltando a sua carreira nas telas, Donald Glover além de ter se destacado em “Community” e em “30 Rock”, também participou de alguns longas que talvez você já tenha visto. Ele faz uma ponta no último filme do “Homem-Aranha: De Volta ao Lar”, interpretando um personagem muito querido pelos fãs do aracnídeo, Aaron Davis, tio do único Homem-Aranha negro até agora, Miles Morales. Também fez “Perdido em Marte”, filme que interpreta um dos cientistas que trazem Matt Damon de volta à Terra. Ainda nos longas, Glover interpretará Lando Calrissian em “Han Solo: uma história Star Wars” e fará a voz do Simba no filme live action do “Rei Leão” que já está em produção pela Disney.
Seus prêmios do Emmy e Globo de Ouro vieram de uma série apenas: “Atlanta”. Criada, produzida, dirigida e estrelada por Donald Glover, essa série mistura drama com comédia e mostra a empreitada que é se tornar um rapper famoso na capital da Georgia. Na série, Glover é o produtor de seu primo, Paper Boi, que depois de um relativo sucesso de um hit, pretende alcançar voos mais altos. Porém, ao meio disso acontecem diversos fatos que nós rimos para não chorarmos, que na verdade são cenas do cotidiano do negro norte-americano.
Em Atlanta, Glover prova a sua genialidade como roteirista, tendo alguns momentos non sense à lá “Community” e muitas desventuras que se desenrolam de forma cômica na vida de Earl, protagonista da série. É óbvio que a seleção das músicas que fazem parte da trilha sonora não poderia ser melhor, compostas por muitos rappers que a maioria dos brasileiros não conhecem e que também boa parte da população do próprio EUA também não entra em contato, apresentando novos artistas para a mídia.
Tudo que já foi produzido por Glover não é apenas para o público negro norte-americano, é para todos que no mínimo querem tomar contato com algo novo e para muitos, distantes da própria realidade. Logo depois de receber seu Grammy, Donald Glover foi criticado por ele ter comparado seu trabalho com a de Lady Gaga, cantora que frequentou no mesmo período a mesma universidade que Glover. Ele alegou que a diva pop não era tão talentosa assim e que muitas vezes artistas brancos têm mais visibilidade que artistas negros. Comentário esse que não apenas foi alvo de muita ira dos “Little Monsters”, como são chamados os fãs da cantora, mas também por muitos outros que o acusaram de invejoso e que faltava talento para chegar aos pés da Lady Gaga. Na mesma entrevista que Glover fez esta crítica, ele completou que nas propagandas do Grammy veiculadas na televisão norte-americana mostravam as atrações principais da noite: Lady Gaga, Pink e Gambino. Só que eles mostraram um garoto negro de um vídeo feito por um fã que nem era o próprio Glover. Em um primeiro momento ele até pensou em não fazer o show, mas depois ele falou que faria a performance porque os negros não têm essa chance na maioria das vezes.
Ainda bem que vivemos uma época onde artistas como Donald Glover ainda surge. Mais do que isso, estamos presenciando a ascensão de um grande artista, que além de ser engajado, cria arte, entretenimento e um excelente conteúdo. Por mais que ele tenha anunciado que Childish Gambino vai durar apenas mais um CD, a sua obra já é um marco para essa geração. E a melhor parte: ainda tem muito o que ser produzido por Glover, o que nos deixa mais tranquilos e ansiosos por seu futuro artístico.