Olhando o que foi feito nas últimas décadas no cinema, coloco Naomi Kawase em um dos lugares de destaque. Com belas e ousadas propostas documentais e filme ficcionais de relevância desde os anos 90, vemos em 2018 uma Naomi Kawase ainda lançando filmes inovadores, como se fosse o início de sua carreira.
Há quase 10 anos atrás, me lembro bem do quanto a diretora inspirava muitos alunos e alunas da faculdade de Cinema por seu olhar sensível e íntimo. Já hoje vejo o quanto Kawase continua inspirando o mundo cinematográfico: ver um filme dela nas salas de cinema nos grandes centros comerciais é como encontrar um oásis no deserto. Sim, graças a Imovision, esses trabalhos continuam passando nas salas (quase) tradicionais de cinema. E o próximo que poderemos assistir, quase um ano depois desde sua estreia em Cannes, é Esplendor.
Nada melhor e mais honroso do que conversar com a própria Naomi Kawase sobre esse novo projeto, que já ganhou o prêmio ecumênico do júri em Cannes e também era concorrente à Palma de Ouro em 2017. Conseguindo parar um pouco a finalização do seu próximo filme, Visions, para o Descontexto, Kawase foi muito atenciosa e solícita e ao responder nossas perguntas.
A Entrevista
Descontexto: Esplendor conta diversas histórias de amor. Existe uma história de amor entre Naomi Kawase e Esplendor?
Naomi Kawase: Luz (em japonês “Hikari”, nome do filme no Japão) é, para mim, cinema. Creio que se pode dizer ser o espírito do cinema. Isto porque, se não existisse luz, não haveria o cinema.
Bem, durante o desenvolvimento deste filme, após meu trabalho anterior, “An” (conhecido como Sabor da Vida no Brasil), eu estava à procura de um tema. Porém, por mais interessante que fosse essa temática, ela não me encantava. Enquanto isso, comecei a pensar o que era cinema para mim. Então, eu soube da existência de pessoas que faziam um trabalho denominado de produção de audioguias. Essas pessoas, além de produzir, procuram compreender o cinema. Então tentam transmitir a emoção do cinema para os deficientes visuais.
Essa iniciativa me tocou.
E, se isso fizer destas pessoas independentes, pensei que o afeto para com meu trabalho poderia tomar forma. Sem dúvida, Esplendor é o resultado da minha paixão pelo cinema.
Descontexto: Vemos em seus filmes uma forma bem particular de trabalhar. Ao mesmo tempo, vemos que seus filmes sempre trazem coisas novas. Como você continua se inspirando como diretora cinematográfica filme após filme?
Naomi Kawase: Pra mim, criar algo que me realiza é fazer aquilo que me enriquece a vida. Se então sinto que já fiz o suficiente, é melhor parar de trabalhar. O local onde nasci é a cidade mais antiga do Japão. Lá, permanecem tradições e literaturas de mais de 1300 anos atrás. E também, nesse contexto histórico, a Grande Imagem de Buda ainda hoje é objeto de adoração. Eu acredito que meu trabalho também vai chegar às pessoas daqui a mil anos.
Ou seja, a mensagem que emana da “fonte” do meu trabalho ainda será válida para um futuro daqui a mil anos.
Descontexto: No mundo ocidental, não vemos frequentemente elementos como a água, o vento, a floresta, e, como vemos em Esplendor, a luz como personagens. Como é filmar e trazer esses elementos aos filmes?
Naomi Kawase: Pra mim, pelo contrário, não é exagero dizer que eles são os protagonistas. Apesar deles não poderem se comunicar através de palavras, têm momentos em que sinto em uma parte da minha alma que eles estão respondendo.
As pessoas, quando apreciam esses elementos, acreditam na existência de Deus ali. Há o surgimento de um sentimento piedoso. Porém, eles não trazem apenas bênçãos para nós; às vezes representam uma ameaça.
Para os japoneses, o que vem à mente é a tragédia do grande tsunami de 2011. O temor de tsunami, de deslizamentos, furacões, faz sentir a presença divina e, com a fé, abrandam a fúria dos deuses. Quando as pessoas se aproximam da natureza, vivem como se fizessem parte dela.
Ou seja, como a natureza é maior que o ser humano. Ele existe nela. Podemos dizer a mesma coisa em relação ao meu filme.
Descontexto: No início dos anos 2000, seus trabalhos foram incluídos em um conjunto de filmes que refletiam as mudanças do mundo e de um estilo cinematográfico contemporâneo, chamado pela Cahiers du Cinema de “Estética do Fluxo”. Como você vê as diferenças mais significativas entre a forma como, por exemplo, Shara foi feito 15 anos atrás, e Esplendor?
Naomi Kawase: A ascensão da era digital, né? Quase todos os cinemas do Japão se tornaram digitais, e, junto com isso, a partir de meu trabalho “O Segredo das Águas”, a gravação passou a ser digital. Também, o método de edição também mudou para digital, e muita coisa passou a ser feita mais facilmente.
Porém, não é bom que o ser humano use seu tempo para criar um mundo em que as coisas evoluam apenas no sentido de se tornarem simples. O mais importante deve ser sempre analógico. Isso é como o tempo que a semente plantada leva até se tornar um fruto. Produzir coisas autênticas também exige seu tempo.
E, para criar esse tempo, deve-se parar um instante, aprofundar o pensamento, e dedicar-se de todo coração ao trabalho criativo.
Nesse sentido, apesar de surgirem essas mudanças ocasionais, desde “Shara” até “Esplendor”, mesmo se disserem que o meu estilo de expressão mudou, sinto que não mudou tanto assim.
Descontexto: Vemos em seus filmes como o cinema tem um grande impacto e importância na sua vida. Esplendor continua mostrando isso, de sua forma. Depois de tantos filmes importantes, agora você também é uma colaboradora impactante do cinema nas pessoas pelo mundo. Isso mudou de alguma forma o seu relacionamento com o cinema?
Naomi Kawase: Sempre recebo luz e coragem de pessoas que apreciam cinema. Isto também está ligado ao meu próximo trabalho. Por alguma razão, nossa vida é conduzida pelo cinema e rezo para que “Esplendor” prossiga este caminho.
Esplendor
Esplendor conta a história de Misako, que trabalha na audiodescrição de filmes, Masaya, um fotógrafo que está ficando quase cego, e o que acontece dentro da convivência deles e da finalização da audiodescrição do filme. A crítica do Descontexto sai em breve e vocês podem assistir ao filme a partir do dia 10 de Maio, em Brasília, Curitiba, Niterói, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
– Tradução: Marcelo Santana