Habibi é a HQ que você precisa para começar a ler quadrinhos. E para quem já é amante da nona arte, esta é a Graphic Novel que vai abrir seu coração e sua mente para novas perspectivas no gênero.
O enredo de Habibi trata de diversos assuntos que estão em pauta nos nossos dias, mas que são apresentados de uma maneira que nos faz entender que eles sempre estiveram presentes na vida humana. Estamos falando aqui de identidade de gênero, sexualidade, religião, sentimentos, família, política, ecologia e diversos outros temas são abordados. Além disso, mostra que não tem local ou época precisa para que todos esses aspectos surjam no nosso cotidiano.
O autor
Habibi foi escrito por Craig Thompson, que antes de Habibi, publicou em 2009 uma HQ chamada “Retalhos” e que conta um pouco da sua própria história. Nascido em 1975 no estado de Michigan nos Estados Unidos, Craig Thompson cresceu no Wisconsin e já tem no currículo três prêmios Eisner, o Oscar dos quadrinhos.
Autor de cinco graphic novels, Thompson é considerado um dos melhores autores de quadrinhos por ter abraçado o gênero. Graphic novels são conhecidas por serem livros em quadrinhos, diferentemente das famosas comics ou revistinhas em quadrinhos de super-heróis.
Will Eisner, quadrinista americano que deu nome à premiação mais importante do estilo, foi um dos precursores desta nova forma de fazer HQs, tendo como marco o lançamento da obra “A Contract With God”, em português, Um Contrato com Deus. Esta com certeza é uma daquelas graphic novels que você deve ler o mais rápido possível.
É neste contexto que está Craig Thompson.
Sua pesquisa para escrever Habibi durou sete anos e o resultado foi uma graphic novel de 672 páginas editada por uma das grandes editoras norte-americanas, a Pantheon Books, que não costuma publicar quadrinhos, mas que em 1991 lançou a coletânea da aclamada HQ “Maus”, a única do gênero que ganhou o prêmio Pulitzer.
Thompson salta ao meio de tantos autores de quadrinhos de super-heróis do mercado americano e propõe uma graphic novel verdadeiramente densa, embasada e que nos conta uma estória envolvente e emocionante.
A graphic novel
Falar do enredo de uma obra sempre é complicado, porque a vontade é contar tudo, mas não queremos estragar o prazer que é ter uma leitura regada de surpresas e emoções. Por isso, vou contar apenas o necessário para que depois da leitura deste artigo você vá ler esta graphic novel ímpar, caso não tenha lido.
Em “Retalhos”, Thompson mostra como foi a sua criação em uma família bem tradicional nos costumes católicos e conversando com alguns amigos muçulmanos ele percebeu que a vida deles não era tão diferente da dele. Foi aí que ele teve a ideia de escrever Habibi, uma estória passada no mundo islâmico e inspirado em narrativas do Corão e das “Mil e uma noites”.
A pesquisa para produzir Habibi foi longa justamente por isso. Diferentemente de outras HQs famosas como “Persépolis” ou “O Árabe do Futuro”, Habibi foi escrita por um norte-americano que não tem qualquer descendência muçulmana ou árabe. Talvez seja por isso que a graphic novel seja tão boa, já que ela conta a partir de alguém que compreendeu uma religião não unicamente por meio da fé, mas sim por meio de um viés mais investigativo.
Isso pode ser observado pelo leitor nos traços que muito se assemelham ao estilo islâmico de fazer arte, desde as letras até as muitas páginas que só utilizando o preto e branco mostram uma cultura riquíssima e que ainda é pouco conhecida aos ocidentais. Cada quadro da HQ é uma obra de arte.
O Oriente Médio retratado em Habibi não é o real, mas sim um que é fantasioso, que poderia ser qualquer um dos países do continente na atualidade. Nele possui sheiks milionários, pobreza da maioria da população e também Dodola e Zam, os dois protagonistas da HQ.
Dodola é uma escrava que fugiu de seu mestre junto com um bebê chamado Zam. Os dois escravos fugitivos começam suas histórias em um barco abandonado ao meio das areias de um deserto. É a partir desse momento que Thompson nos conta diversas passagens do Corão que se misturam de forma impecável com o próprio enredo. Entendemos, por exemplo, a origem do islamismo e as muitas tradições dessa que é uma das grandes religiões do mundo.
Dodola é vendida por seu pai a um escriba bem mais velho que ela aos nove anos de idade. Seu marido ainda vê a infantilidade nela e por isso não exerce tal papel em sua vida, mas sim a de um professor, já que é ele que ensina para a jovem a arte de ler e escrever. É a partir deste conhecimento que Dodola aprende todas as histórias do Corão e que são repassados para Zam ao longo da HQ. Já Zam é encontrado por Dodola em um dos muitos cenários árabes da estória.
Em uma das partes mais tensas do enredo, Zam sai do barco, que é a moradia dele e de Dodola e não volta mais. A moça o espera por dias, mal sabendo ela que ele nunca mais voltaria para aquele lugar. Ao escutar um barulho do lado de fora, Dodola acorda de um sono leve tem certeza que é Zam, se levantando rapidamente com expressão fatigada aos gritos de “Zam!”. Mas quando a porta é arrombada ela percebe que não é Zam e sim funcionários do maior sheik da região.
Depois de muito relutar, Dodola é capturada e levada até o líder que já estava entediado de todas as suas esposas e toma Dodola para ser mais uma delas em seu harém com mil mulheres. Inspirado, como já dizemos, pela “Mil e uma noites”, Dodola faz um acordo com o sheik, que diz sentir prazer com suas mulheres apenas por um dia já que ele logo se entedia. O governante propõe que ela dê prazer a ele por setenta noites seguidas, caso contrário ele corta a sua cabeça. Mas se ela conseguir, ele garante o que ela quiser: dinheiro, exércitos e até liberdade.
Tendo em mente sempre a vontade de rever Zam ou até mesmo procurar por ele, Dodola passa por diversas situações para cumprir com o acordo. Além de ter que ir para cama com o sheik todas as noites, ela ainda é obrigada a enfrentar uma “concorrência” com todas as outras mulheres e ainda passa por uma das situações mais complicadas no enredo: a gravidez.
A forma como a gravidez de Dodola é retratada é um primor. Com diversos desenhos subjetivos e sutis se misturando com passagens do Corão, temos uma nova perspectiva sobre a vida.
Na última noite com o sheik ele declara que está entediado e que a promessa de Dodola não foi cumprida. Mas ao invés de mata-la, como havia prometido, ele a prende por meses e vive mais sofrimentos no harém do sheik.
Essa é apenas uma das passagens de Habibi, que mostra como os momentos alegres e felizes dos personagens estão nas partes mais simples do nosso cotidiano. E são justamente essas situações que nos prendem ao lado bom da vida em momentos de grande sofrimento.
É sobre pessoas
O destino dos dois protagonistas é mercado de encontros e principalmente de desencontros. Misturados e contados pelo islamismo, Habibi tem o poder de transmitir sentimentos conflitantes não apenas com a religião, mas principalmente entre os dois personagens.
O que ocorre nessas quase 700 páginas da edição de Habibi em português da Companhia das Letras faz com que o leitor sinta emoções e questione suas próprias compreensões não apenas sobre o islamismo, religião vítima de muito preconceito no ocidente, mas também sobre o amor e sobre como enxergar o outro. De acordo com o jornal britânico The Guardian, esta é
“Uma história maravilhosa e cativante, mas também indescritível neste curto espaço, pois dentro dela há ainda milhares de outras histórias. É como uma caixa de joias à qual você retornará de novo e de novo.”
O que mais impressiona em Habibi é a evolução de seus personagens, que começam de uma forma na infância e que são moldados ao longo do tempo por um lugar, por uma religião, por pessoas.
A história de Dodola ou de Zam poderia ser de qualquer um, independente se vive no Oriente Médio ou no Brasil. Isso porque os protagonistas lidam com elementos que são comuns a qualquer ser humano e é nisso que Habibi nos abre os olhos, já que o enredo nos faz recordar que por mais que sejamos diferentes, no fundo possuímos os mesmos sentimentos e a mesma vontade de sermos livres.