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Picasso e sua fase azul

O que música tem a ver com pintura? Ouvindo “Kind of Blue” de Miles Davis, refleti sobre Picasso.

Foi ouvindo o espetacular podcast “Discoteca Básica” do jornalista especializado em música, Ricardo Alexandre que respondi a pergunta acima. Para quem não conhece, em cada episódio do podcast é contada a história completa de um disco, um trabalho completo que abrange autor e obra. E como o próprio Ricardo Alexandre fala no início dos programas, a ideia é que no final, cada ouvinte possa parar uns 40, 50 minutos e ouvir, de fato, o disco tema do episódio. Isso é um hábito que perdemos drasticamente nos nossos dias graças ao streaming. Mas esse é assunto para um outro momento.

Em um desses episódios, o décimo para ser mais preciso, o disco básico era o “Kind of Blue” do gênio Miles Davis, o álbum de jazz mais popular de todos os tempos. Ao explicar sobre o título do disco, o ilustre apresentador do podcast, Ricardo Alexandre, fala das possíveis interpretações e motivos para a escolha do nome. Em uma delas, Alexandre descreve que esse título pode ter sido escolhido por causa da melancolia das músicas, porque em inglês, “blue” descreve bem um clima chuvoso, de outono. Em seguida, o jornalista nos conta que também tem a ver com a própria cor azul, pelo fato de Duke Ellington chamar Miles Davis de Picasso da arte invisível. E a “coincidência” mora nesse ponto, já que na década de 20, Picasso teve a sua famosa fase azul, resultado de um dos momentos mais melancólicos do pintor espanhol. “Kind of Blue” talvez fosse o tipo de fase azul de Miles Davis.

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Então, o podcast “Discoteca Básica” chega ao ponto que resultou nesse artigo. Na contracapa do disco há um texto de Bill Evans, ilustre pianista que participou das gravações do álbum. Nesse texto, “Improvisação no Jazz“, Evans explora essa metáfora entre pintura e música da seguinte maneira:

Existe uma arte visual japonesa na qual o artista é obrigado a ser espontâneo. Com um pincel especial e tinta preta, ele deve pintar sobre um fino pergaminho esticado, de tal maneira que uma pincelada não natural ou interrompida virá a destruir a linha ou romper o pergaminho. Apagar ou fazer modificações é impossível. Tais artistas devem praticar um tipo especial de disciplina, que permite que a ideia se expresse na comunicação com as mãos de modo tão direto que o pensamento não interfira. Os quadros que resultam não possuem a composição complexa e as texturas da pintura usual, mas diz-se que aqueles que olham bem encontram algo capturado ali que desafia explicações.

A comparação entre música e pintura encontram o ponto em comum evidente: o sentimento, a sensação que elas passam para nós e no objeto desse artigo é a precisamente a melancolia.

Uma cor melancólica

Como uma música pode passar uma sensação? E a cor, como ela consegue transmitir um sentimento? Recentemente, me deparei com um vídeo no YouTube com um título bem curioso: “Por que os gregos da antiguidade não enxergavam o azul?”. Com uma pergunta tão intrigante, não hesitei em clicar. O mais engraçado é que ao pensar em Grécia, geralmente pensamos em azul. O mar grego tem um azul diferente, as casas possuem telhados azuis e até a bandeira do país é azul. Mas então, por que os gregos da antiguidade não enxergavam o azul com tanto dessa cor ao ser redor? Pelo simples fato que o azul não tinha nome.

Em textos antigos, de diversas civilizações, é possível perceber que o termo “azul” simplesmente não existiu. Ao contrário, é mencionado o preto, branco e vermelho. As vezes o verde e o amarelo também apareciam nesses textos que datam milhares de anos. E essas são as cores que pesquisadores observaram que as palavras que as descrevem surgiram nessa ordem em suas línguas, começando com o preto e branco e deixando o “azul” por último. E a explicação parece óbvia quando entendemos a teoria.

egyptian blue art
A civilização egípcia foi uma das poucas na antiguidade a ter o termo “azul” no seu idioma

A distinção entre preto e branco é evidente e está presente em todas as culturas, porque é a distinção entre dia e noite. Vermelho vem em seguida porque sempre é associada ao sangue e ao perigo. O amarelo e verde surgem em sequência por uma necessidade de distinguir se as frutas estavam maduras ou não. Por fim, o azul entra na linguagem porque não interagimos com muitas coisas azuis no nosso dia-a-dia. Além disso, pintar com preto ou vermelho é mais fácil que pintar com azul, já que para ela ser “criada”, precisamos misturar duas cores. É interessante observar nas cavernas com pinturas rupestres há uma predominância do preto, vermelho e cores que estão próximas desse espectro. Mas vai ser complicado encontrar uma pintura dessa data utilizando o azul de forma predominante.

Podemos concluir que os antigos enxergavam o azul, é evidente, mas não o compreendiam como uma cor separada das outras, mas sim como tons de branco, preto e até verde. Os antigos, ao descrever o mar, que para nós é azul, o descreviam como largo, profundo, tempestuoso, mas nunca azul.

Dependendo da escala de azul que utilizamos, podemos chegar muito próximos do branco ou do preto. Por exemplo: o “azul-bebê” está mais próximo do branco e o “azul-marinho” do preto. E esses tons de azul transmitem diferentes sensações para nós humanos, justamente porque ao longo dos muitos anos de evolução, começamos a associar esse azul mais próximo do preto como algo perigoso, como o mar ou o céu da meia-noite. Ao contrário do azul mais próximo do branco, que é a cor do céu e de lagoas rasas.

Picasso e o azul

Pablo Picasso dispensa apresentações, talvez seja o artista plástico mais famoso do século passado. Sua arte teve diversas fases, sendo o cubismo talvez a mais icônica, tornando suas pinturas diferentes de tudo que já havia sido produzido antes. Porém, o texto é sobre o azul e durante esse período do artista espanhol, seus quadros transmitiam a mesma melancolia de Miles Davis, uma tristeza, uma sensação de abandono.

É notoriamente acordado entre os historiadores da arte que o suicídio do seu grande amigo e também pintor, Carlos Casagenas, aos 21 anos tenha sido o marco para o começo dessa fase, em 1901. Picasso tinha apenas 20 anos e também foi nesse mesmo ano que deixou de assinar seus quadros com “Pablo Ruiz y Picasso” para somente “Picasso”.

Suas obras desse período são de 1901 e 1904, ano em que o pintor muda-se para Paris. Portanto, são quadros produzidos na Espanha e na França. O quadro que inaugura essa fase é sobre a morte de Casagemas, “La mort de Casagemas”, onde o azul começa a surgir. Aqui, vale um parêntesis interessante sobre Casagemas. Também espanhol, como Picasso, o artista se suicidou por arrependimento de ter tentado matar sua amante à época, que era dançarina do Moulin Rouge.

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“La mort de Casagemas”

Casagemas não é protagonista apenas do primeiro quadro da fase azul de Picasso, mas também da obra mais célebre desse período, “La Vie”, de 1903. Esse quadro teve diversos rascunhos e o homem a direita variou entre um autorretrato de Picasso e terminou com a imagem de Casagemas. As interpretações para essa imagem são inúmeras e o artista nunca deu muitas explicações sobre esta obra.

“La Vie” também foi produzida na pior fase financeira de Picasso e foi vendido um mês depois que ela foi terminada. Inclusive, a fase azul é permeada por essa dificuldade financeira, o que potencializou esse período artístico do pintor espanhol.

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“La Vie”

A fase azul de Picasso é característico pela evidente utilização da cor azul de forma monocromática em suas pinturas, que não são muitas, mas são de fato marcantes para a História da Arte. Além de retratar seu amigo, Picasso também mostrava nas imagens desse período ladrões, prostitutas, cegos, mendigos, crianças e seus pais em situação de sofrimento.

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“Des pauvres au bord de la mer”

Da mesma forma que Goya na sua fase negra, o clima geral era de abandono, tristeza, melancolia. Picasso era jovem, a vida não se apresentava para ele com boas perspectivas e tudo parecia não ir bem. Miles Davis também pôde ter transmitido essa sensação em sua obra. Apesar de ser rico, nunca teve a oportunidade de frequentar as escolas que os brancos frequentavam. Da mesma forma, as oportunidades não surgiam da mesma maneira para ele do que para os outros músicos brancos.

Ambos se tornaram incontestáveis em suas especialidades e Picasso ainda teria muito o que apresentar após a sua fase azul.

Um momento mais cor de rosa

Após a fase azul de Picasso, é inaugurado o período rosa do pintor, passando uma sensação aposta aos anos anteriores, mais otimista, alegre e apaixonada. Em 1904, Picasso conheceu Fernande Olivier, sua amante e parceira na produção de várias obras. A vida parecia ser novamente colorida, estava dando empolgantes perspectivas. Para mim, o quadro que encerra essa fase – e que tive a excelente oportunidade de vê-lo com meus próprios olhos – é “Les Demoiselles d’Avignon”, de 1907. O começo do cubismo de Picasso, um quadro que muito conta sobre ele e também seus amores.

Minha interpretação foge àquela dada pelos críticos de arte e pelos historiadores. Esse quadro é o azul com o rosa, a despedida da fase melancólica e uma boas-vindas para o futuro brilhante que estava porvir na carreira de Picasso. Tanto que a cor predominante é o rosa, mas lá no fundo ainda existe o azul.

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“Les Demoiselles d’Avignon”

Assim como aconteceu com Miles Davis, após a gravação de “Kind of Blue”, o artista conseguiu popularizar o jazz e fez do seu álbum o mais vendido da história dentro dessa categoria. Davis estava sendo elevado de patamar, entrando no seleto grupo dos gênios da música e recebendo todos os frutos do sucesso. Até hoje seu nome é reconhecido, assim como é o de Picasso.

E o que esses artistas mostram para mim hoje é essa superação, esse raiar do dia após a tempestade, o rosa depois do azul, a alegria depois da melancolia. Atravessamos talvez uma das fases mais difíceis da humanidade e que a perspectiva de melhora parece distante. Mas todas as dificuldades existem para nos provarmos sermos melhores, dando oportunidades verdadeiras de superação.

Assim como Picasso e Miles Davis, eles conseguiram superar seus maiores momentos de dificuldade e apresentaram suas grandes obras em suas melhores fases. Que a arte possa sempre nos inspirar em fazermos mais e melhor. E que cada um possa fazer crescer em si o seu próprio Picasso ou Miles Davis.

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