Madrid, 1909. Uma pequena residência de dois pavimentos é demolida nas cercanias da capital espanhola. Este acontecimento é o triste fim de um lugar que já era carregada de muita melancolia e sofrimento. Era a destruição da última residência de Francisco de Goya na Espanha, lugar esse que tinha o nome Quinta del Sordo e habitou as 15 pinturas negras do artista.
La Quinta
Adquirida em 27 de fevereiro de 1819 por Goya, a Quinta del Sordo já possui tal nome. Ao contrário do que muitos pensam, o antigo dono era surdo assim como o pintor quando comprou a propriedade. Viveu lá até o ano de 1824, quando foi para seu exílio em Bordeaux, na França. Localizada nas cercanias de Madrid, a casa era uma das poucas ao meio de longos campos usadas para cultivo na região. São muitas as teorias que justificam a compra do imóvel pelo ilustre artista, a mais provável é que Goya desejava se afastar do governo totalitário de Fernando VII, já que o que foi encontrado na propriedade pode comprovar tal teoria.
Em 1828, pouco tempo depois da morte do artista, Antonio Brugada, amigo pessoal de Goya, fez o primeiro catálogo das 15 pinturas espalhadas por todas as paredes da casa. Eram quadros que expressavam toda a melancolia e tristeza de seu autor. Pode ser pela surdez que tinha sido agravada, pela situação política espanhola ou outro motivo, mas fato é que são imagens que até hoje fazem os pelos do braço arrepiarem. Esse conjunto de quadros é conhecido como as pinturas negras de Goya.
E lá elas ficaram por algum tempo. Em 1854, Mariano Goya, neto do pintor, vendeu a propriedade. Em 1867, Charles Yriarte, escritor francês, dá a notícia que um dos quadros foi arrancado da parede, constando agora 14 pinturas na propriedade. Quinta del Sordo é mais uma vez comprada por um banqueiro francês, Émile d’Erlanger, que faz dela um investimento. Em um primeiro momento tenta vender as pinturas ao Louvre e depois à Exposição Universal de Paris de 1878. Sem sucesso na venda, d’Erlanger doa as pinturas para o Museu do Prado, localizado em Madrid. A instituição contrata o fotógrafo Jean Laurent para fazer o primeiro catálogo fotográfico das 14 pinturas negras de Goya, antes de remove-las da casa.
A casa ficou desabitada desde a compra de d’Erlanger até a sua demolição. Em 1884 foi construída nos terrenos da Quinta del Sordo uma estação de trem, que ligava Madrid à Almorox. Porém, a casa ficou abandonada e consequentemente, foi deteriorando-se até que em 1909 ocorre a sua demolição, seguida em 1970 pela demolição da estação de trem no terreno.
As pinturas
As 15 pinturas negras de Francisco de Goya foram pintadas durante os anos de 1819 e 1823. Não se sabe a data exata da produção de cada quadro, mas é sabido que as obras foram feitas no período que o pintor habitou a Quinta del Sordo. Por isso, elas possuem a peculiar característica de terem sido pintadas com a técnica óleo a seco no reboco da parede da casa. Quando Émile d’Erlanger adquiriu as pinturas, teve o trabalho de transferir as imagens do reboco para a tela. Processo esse que durou de 1874 a 1878 e foi feito pelo pintor e restaurador Salvador Martínez Cubells. Atualmente, 14 pinturas estão conservadas e expostas no Museu do Prado em Madrid. Denominadas de “pinturas negras” por ter sido usado tintas escuras ou negras e também por representar temas sombrios. Vamos aqui analisar cada um dos quadros que ficaram por muitos anos nas paredes da propriedade, a começar por aquela perdida e arrancada de um dos cômodos da Quinta.
Cabezas en un paisaje
Baseado nas descrições de Brugada sobre tamanho e seu tema, é bem provável que a “décima quinta” seja Cabeças em uma paisagem. Atualmente ela pertence a coleção de Stanley Moss, poeta norte-americano, em Nova York. Localizada no pavimento superior, ao lado da porta, esta pintura pode ser considerada a menos negra da coleção. Talvez seja por isso que ela tenha sido removida da propriedade. De acordo com Yriatre, o quadro foi para a residência Vista Alegre, pertencente ao Marquês de Salamanca. Os olhares desconfiados e a paisagem sob a luz de um sol escondido são os traços típicos desta fase de Goya.
El perro
Localizada também no andar superior da Quinta, do lado oposto da porta onde estava o quadro Cabezas en un paisaje, está El perro, “O cachorro”. A pintura de 131,5cm por 79,3cm mostra a cabeça de um cachorro parcialmente afundada ou escondendo o resto do seu corpo em um plano ocre escuro. O animal olha para cima, acompanhando uma espécie de morro na paisagem. Esse título está presente no inventário do filho de Goya, sendo que no Museu do Prado foi registrado como “O cachorro afundado”.
Esse quadro nos traz uma sensação de solidão completa, já que o cachorro está completamente sozinho em um local monocromático. Essa sensação é intensificada porque sabemos que os cachorros são animais humildes, carinhosos e principalmente companheiros. E esse animal está solitariamente afundado, podendo fazer nada, sem receber qualquer ajuda.
Porém, esta é uma imagem que causa polêmica entre os críticos de arte, porque no registro fotográfico de Laurent, o único que fotografou as obras ainda na parede da Quinta del Sordo, é possível ver dois pássaros em cima do que seria esse morro ou penhasco.
Sendo assim, o cachorro estaria olhando para os pássaros voando e mais ainda, o cão pode ser que não esteja afundado, já que é possível ver uma parte do corpo do animal ao lado de sua cabeça. Por isso, outras interpretações podem ser dadas a esta imagem. Além disso, este quadro coloca em cheque o processo de restauração das pinturas negras de Goya. Como elas foram removidas da parede e transferidas para uma tela, muito do seu conteúdo pode ter sido perdida. Inclusive, alguns críticos alegam que “O cachorro” seja uma obra inacabada do artista.
Vision fantástica/Asmodea
Localizado à direita de “El perro”, Vision fantástica ou Asmodea é uma das imagens mais intrigantes da coleção. Goya não intitulou nenhuma de suas pinturas negras e por isso os quadros podem possuir títulos diferentes, já que foram catalogadas diversas vezes. No Museu do Prado esta tela está como “Asmodea”, em português, “Asmodeus”, por ser o personagem em destaque na imagem. Asmodeus é um demônio que está no Livro de Tobias do Antigo Testamento, considerado um dos sete anjos do inferno.
Podemos ver que abaixo do demônio está ocorrendo uma batalha, sendo que no primeiro plano, a direita, podemos identificar soldados do exército francês. Goya se isolou na Quinta del Sordo porque era contra o governo espanhol, que cedeu sua soberania ao poder de Napoleão. Por causa disso, houve diversas invasões francesas em território espanhol, onde muitos rebeldes liberais foram massacrados pelas tropas napoleônicas. Goya, por consequência, era contrário a tal invasão e por isso muitas das suas pinturas negras retratam esse período da Espanha, assim como “Visão fantástica”.
Este quadro possui o mesmo tom que o seu “vizinho”, “O cachorro”. Além disso, ambos parecem ter uma pedra ou uma rocha na imagem. Alguns críticos alegam que a rocha de “Visão fantástica” é a Pedra de Gibraltar, refúgio dos liberais durante a Guerra Civil.
Também não há uma certeza sobre as figuras no céu. O Museu do Prado na época que adquiriu o quadro alegou que eram duas bruxas alçando voo. É possível ver que uma das figuras, a de manto vermelho, é feminina, sendo a outra Asmodeus. Porém, outras interpretações levam a crer que a figura feminina é o demônio. Asmodeus é retratado em uma pintura do espanhol Luis Vélez de Guevara como uma mulher, de forma satírica, podendo ser inspiração para Goya. Por ser esse o demônio que representa a ira e a destruição, podemos compreender que esses eram os elementos característicos da guerra que a Espanha estava presenciando.
Procesión del Santo Oficio/Peregrinación a la fuente de San Isidro
Ao lado de “Asmodea”, na parede da direita à porta, temos o quadro Procissão do Santo Ofício ou Peregrinação à fonte de San Isidro. Brugada intitulou a pintura como “Procissão do Santo Ofício” porque na esquina inferior a direita é possível ver um personagem vestido com os trajes habituais do Tribunal da Inquisição, que ainda existia na Espanha do século XIX. Porém, esta interpretação é no mínimo polêmica, já que mais ninguém na tela parece estar usando tais vestimentas.
Ao contrário, as pessoas que compõe a imagem parecem grotescas, que poderiam ser monges ou bruxas, que estariam em procissão à algum local desconhecido. O segundo nome dado ao quadro é uma referência a outro da coleção de pinturas negras, La romería de San Isidro, onde está retratado pessoas similares a estas da “Procesión”.
Além disso, a imagem traz uma sensação de desequilíbrio, já que todas as pessoas estão concentradas em um canto do quadro que coloca-os apinhados em uma paisagem completamente irreal. Seus tons bem escuros fazem se quebram com a possibilidade de céu aberto no cenário.
Mujeres riendo/Dos mujeres y un hombre
À esquerda da “Procesión”, na parede do fundo, está Mujeres riendo ou Dos mujeres y un hombre. Este quadro pode ser um complemento do quadro que está na mesma parede da Quinta del Sordo, do outro lado da janela, o “Hombres leyendo”. Ambos possuem um tom bem escuro, sendo contrastado apenas pelo rosto e pelas roupas dos personagens.
Goya não possui qualquer registro escrito ou falado dessa série de pinturas. No auge do seu desapontamento com a política espanhola e seu desespero ao ver sua saúde física e mental se desvaindo, temos a impressão que aos seus 75 anos de idade, Francisco de Goya não queria que as pessoas soubessem da existência dessas 15 pinturas. Ou ao menos não fazia qualquer questão. Elas eram as expressões de sentimentos vividos pelo pintor nesta fase e “Mulheres rindo” é uma das representações do que ele vivia.
As expressões dos três personagens mostram sensações confusas, sorrisos um tanto quanto maníacos. Alguns críticos alegam que o homem está masturbando ou que ao mínimo é um louco. Enquanto que as duas mulheres ao lado podem ser prostitutas, já que Goya normalmente as pintava em pares em seus quadros. Por outro lado, essas mulheres usam roupas mais humildes, de classes sociais mais baixas.
Como quase todos os quadros desta coleção, Mujeres riendo também está envolto em polêmicas. Uma pesquisa feita com raio X mostrou que a tela foi pintada e retrabalhada antes que a versão final fosse instalada. Foi mostrado que a posição da mão da figura masculina mudou e que as duas figuras femininas estivessem olhando para um livro apoiado nos joelhos do homem. Por mais que esta pintura esteja em conexão com a outra da mesma parede da Quinta, os quadros das pinturas negras não são conectados pelo mesmo tema ou mesma história, mas sim, pelo mesmo estilo e técnica de pintura.
Outra característica que colabora com essa teoria feita após a pesquisa de raio X é que Goya normalmente não tratava sobre sexo em suas obras. Quando tratava era de uma forma discreta, quase tímida, tampando ou escurecendo os órgãos genitais e evitando mostrar o nu.
Hombres leyendo/La lectura
Assim como já tratamos no quadro anterior, Hombres leyendo ou La lectura está na mesma parede que “Mujeres riendo”, podendo ser um complemento do quadro ao lado, já que ambas possuem o mesmo tom de preto, roupas contrastantes e expressões similares. Se de fato a ideia era que as mulheres rindo fosse na verdade o homem lendo algo para as mulheres, essas duas obras seriam do mesmo tema ou representação de um mesmo local.
É possível identificar seis homens na imagem, mas não sabemos ao certo quem são eles. A suspeita é que sejam políticos ou uma referência aos encontros políticos clandestinos feitos durante o período chamado “Triênio Liberal”, entre 8 de março de 1820 e 1823, quando o totalitário Rei Fernando VII foi obrigado à Constituição Espanhola e a reprimir a inquisição no país. O interessante é que a cena é quase um oposto do que o ocorre ao lado com “Mujeres riendo”. Já que nesta imagem podemos ver os homens com expressão mais sérias e fazendo uma atividade “típica ao homem”.
Assim como no quadro do lado, pesquisas com raio X foram feitas também nesta pintura e foi detectado que também ocorreram diversas mudanças na imagem. Em algum momento houve uma paisagem no segundo plano com um cavaleiro montado em seu cavalo. A figura central vestida de branco tinha chifres e asas e nesta mesma posição da pintura foi possível descobrir que havia um impasto, técnica utilizada na pintura no qual a tinta é espalhada numa área da tela ou em toda tela de forma tão espessa que é possível perceber marcar dos objetos que foram usados para pintar, como por exemplo pincel ou espátula. Isso é no mínimo intrigante porque esta não é uma técnica que foi utilizada com frequência por Goya.
Átropos/Las Parcas
Agora na parede da esquerda, mais próximo do local onde um dos quadros foi arrancado, temos Átropos ou Las Parcas. Diferentemente dos dois quadros anteriormente analisados, este possui tons em ocre, mas mantêm o tom escuro característico dos outros 14 quadros da coleção.
Representando as Parcas, as “Moiras” da mitologia grega, vemos as três filhas da noite, as divindades que controlam o destino dos mortais e definem o curso da vida humana, decidindo sobre a vida e a morte. Elas possuíam tanta autonomia que nem Zeus poderia ir contra suas decisões. Na mitologia romana eram conhecidas como Nona, Décima e Morta. Na mitologia grega eram respectivamente Cloto, Láquesis e Átropos.
Cada uma das três irmãs possuem uma função e elas estão representadas no quadro. A primeira, à esquerda, seria Cloto, que tece o fio da vida, representado por um recém-nascido no quadro de Goya. A do meio é Láquesis, que cuida da extensão e do caminho da vida. Podemos ver que ela está olhando por um espelho ou uma lente, o que simboliza o tempo ou como podemos ver o tempo passar, já que ela está medindo tal tempo. Por fim, no canto direito temos Átropos, que está com a tesoura na mão, pronta para cortar o fio da vida.
Ao meio de Átropos e Láquesis podemos ver um homem, que parece estar algemado ou preso, o que poderia representar um ser humano ou Prometheus, como alguns críticos consideram.
As quatro figuras parecem estar aos céus, acima de uma paisagem negra e todas possuem um rosto que não é esteticamente agradável. A partir da mitologia recriada por Goya nesta imagem podemos tirar diversas conclusões sobre como ele estava se sentindo, condizendo com todos os outros quadros das pinturas negras.
Duelo a garrotazos
Fechando o andar superior da Quinta del Sordo, temos no canto da parede esquerda um dos mais belos quadros de Goya, Duelo a garrotazos ou La riña. A interpretação tradicional da pintura é a de dois homens lutando com bastões em um lugar desolado enterrados até os joelhos. Esse tipo de duelos ainda ocorria na época que o quadro foi pintado e remete ao período dos cavaleiros. Ao contrário desses, as armas eram bastões e faltava regras e protocolos tradicionais, como os padrinhos, a contagem dos passos e a escolha das armas.
Com tons de azul e verde, este não é um dos quadros mais escuros de Goya. Porém, possui as características marcantes da coleção, como temática, já que a cena é um combate entre dois homens, um momento que envolve tensão e seus tons escuros nas serras e na terra. Esta última está também envolta em polêmicas. Ao comparar a tela exposta no Museu do Prado com a fotografia de Laurent, podemos interpretar que os homens não estavam enterrados até os joelhos.
De acordo com alguns críticos, Goya pintou esses homens em pé na grama e não em uma espécie de areia ou terra que tampa os joelhos dos homens. A remoção da imagem da parede da Quinta del Sordo pode ter alterado drasticamente esta imagem.
O que é possível ver nesta imagem é a morte. Ela é implacável neste quadro, o combate entre esses dois homens só terminará se um dos dois for morto. Além disso, esse embate pode ser a representação da própria Guerra Civil ou da discórdia entre os homens na Espanha.
O fato dos combatentes estarem à esquerda e não ao centro, trazem a sensação de desequilíbrio, o que é presente em outros quadros das pinturas negras, e também é uma forma de contra as técnicas clássicas de pintura, já que o destaque está nos homens, mas o que ocupa boa parte da tela é a paisagem. Esse mesmo cenário, que está retratado de forma colorida é um contraste com os dois homens que estão indo para o caminho da violência, oposta a tranquilidade da natureza.
Dos viejos comiendo sopa
Começando a análise das pinturas do piso térreo da Quinta del Sordo, acima da porta principal tinha um dos quadros mais icônicos das pinturas negras de Goya: “Dois velhos comendo sopa” ou simplesmente “Dois velhos comendo”. É a menor de todas as pinturas da coleção.
No inventário de obras do filho de Goya, esse quadro está intitulado como Dos mujeres porque de fato não é possível distinguir qual é o gênero desses dois personagens. O da esquerda parece uma senhora ou um senhor banguela mexendo no que poderia ser uma sopa. O da direita tem uma feição quase cadavérica, parecendo ser uma caveira em um corpo humano. Por causa disso, este quadro foi descrito pelo escritor P. L. Imbert em seu livro “Espagne. Splendeurs et misères. Voyages artistiques et pittoresques como “A morte comendo com uma bruxa”.
No registro fotográfico de Jean Laurent, é possível ver uma sombra por trás da personagem da esquerda, dando uma sensação estranha de qual perspectiva ela está na imagem.
Una manola/La Leocadia
Na mesma parede de “Dois velhos comendo sopa”, a sua esquerda temos um quadro que chega a contrastar com o resto das imagens das pinturas negras, já que estamos falando da Leocadia ou Una Manola. Também é conhecida pela união dos dois nomes: Una manola: Leocadia Zorrilla.
E por que tal precisão sobre quem era essa mulher vestida de luto? Leocadia Zorrilla y Galarza e depois de seu casamento, Leocadia Weiss foi amante de Goya, além de ter sido a responsável por cuidar da Quinta del Sordo no período que o pintor a habitava. O outro nome do quadro “Una Manola” significa uma mulher madura em espanhol. Esse título pode ser mais apropriado ao quadro já que existe uma dúvida sobre quem são as mulheres retratadas na obra de Goya. Leocadia é muito similar a primeira esposa do pintor, Josefa Bayeu.
O escritor espanhol Juan José Junquera coloca que Leocadia na sua maioria das vezes era retratada de maneira mais romântica. Por mais que na pintura da Quinta ela esteja de luto, o que traz consigo um clima de morte, sua pose é um tanto quanto afetuosa.
Como já dissemos, Goya não deixou qualquer registro sobre suas pinturas negras, ele apenas as fez. Mas o que traz uma certeza sobre quem está retratada nesta pintura é o último quadro da vida de Goya.
A semelhança desta com Leocadia da Quinta é impressionante. Além disso, ela está retratada neste último quadro em uma pose mais romântica, ao contrário da imagem anterior que pode ser Josefa Bayeu. O uso das mesmas cores utilizadas na pintura negra e nesta última imagem também é mais uma evidência que a personagem retratada nesse quadro é a amante de Goya.
Voltando ao primeiro quadro, vemos Leocadia apoiada numa pedra em contraste com o céu azul ao fundo. Tal confronto de cores também é percebível em outras pinturas negras, fazendo desta parte da coleção, mas tendo o charme da mulher que presenciou a produção de todas essas imagens na Quinta del Sordo.
Dos viejos
Completando a parede da porta, junto à “Leocadia” e “Dos viejos comiendo sopa”, temos simplesmente Dos viejos ou Un viejo y un fraile. Neste quadro vertical de Goya podemos ver que são duas figuras, uma semelhante a um frade e o outro retratado de forma mais grotesca.
O personagem que está em segundo plano é quem chama mais nossa atenção. Se parecendo com um animal, com orelhas pouco similares às humanas, a figura está gritando no ouvido do que poderia ser um frade, podendo ser uma referência à surdez de Goya. Os dois velhos podem ser frades, pois o pintor já retratou esses homens santos nessa forma mais animalesca em outra coleção do autor, Los disparates. Outra possível referência é que o velho com longas barbas grisalhas seja Cronos, o deus do tempo em seu final de vida.
“Dois velhos” possui as características marcantes das pinturas negras, sendo muito utilizada a tinta preta e o ocre, tendo o contrate com clores mais claras, que nesta imagem está nas barbas do velho.
La romería de San Isidro
À esquerda dos “Dois velhos”, ocupando toda a parede entre duas janelas do primeiro pavimento da Quinta del Sordo temos La romería de San Isidro. Semelhante à “Peregrinação à fonte de San Isidro”, localizado no pavimento superior da casa, também mostra um conjunto de pessoas que se perdem até a linha do horizonte.
O dia que é feito a romaria de San Isidro é um feriado em Madrid, ou seja, é um dia muito tradicional para os habitantes da capital espanhola. Neste quadro o que pode ser visto é algo oposto ao que normalmente ocorre em romarias. É possível ver homens ébrios, outros com expressão assustada, um com um violão e cantando.
Todo o grupo está indo para a Ermita de San Isidro situado em Carabanchel, em Madrid. Essa mesma região foi retratada por Goya no quadro “La pradera de San Isidro”.
Esta imagem é quase que o oposto da pintura negra. Ambas retratam a mesma região. Enquanto que neste há cores mais vivas e pessoas tranquilas no ambiente equilibrado, em “La romería de San Isidro” vemos os tons negros característicos, uma cidade escura ao fundo e pessoas que beiram o desespero.
Esta obra em especial possui muitas repintadas do restaurador responsável pela transferência dos quadros da parede para a tela, Salvador Martínez Cubells. Na fotografia feita para o catálogo de Laurent é possível quer alguns rostos não estão tão detalhados.
El Gran Cabrón/Aquelarre
Situado de frente para “La romería de San Isidro”, ocupando toda a parede oposta, temos El Gran Cabrón, que após a catalogação do Museu do Prado, recebeu um nome mais moderno: Aquelarre.
Aquelarre é a reunião das bruxas, também conhecido como “Sabbat”. “Aquelarre” é o termo gaélico para este evento, que também é conhecido como “A Roda do Ano”. Este evento era para celebrar a passagem de ano e que neste quadro de Goya contou com a ilustre presença do “Grande Bode”, ou em termo mais conhecidos, Satanás.
Goya já retratou não apenas o demônio em forma de bode em diversos outros quadros, mas também já apresentou esse evento em outras telas.
Ele, mais a jovem sentada à frente são os destaques do quadro. Parece que o demônio está dirigindo a palavra para a mulher sentada na cadeira, o que poderia ser interpretado como um ritual de passagem para ela se transformar em uma bruxa. Todas as outras pessoas presentes na imagem parecem ouvir atentamente ao que o Grande Bode está falando, com exceção daquela que está de costas e usando uma roupa branca.
Todas as expressões parecem grotescamente retratadas, quase que ao ponto de se igualarem aos traços animalescos do demônio em forma de bode que está presente na cena. Essa na verdade é expressão do sentimento do próprio Goya, que assim como todas as pinturas presentes na Quinta del Sordo, possuem um clima soturno e atmosfera ritualística nos remete à pesadelos e às imagens negativas da própria vida.
Assim como outras pinturas negras, este também teve prejuízos no momento da remoção da imagem da parede para a transferência à tela.
Boa parte do canto direito do quadro foi removido, não indo para a tela que está hoje exposta no Museu do Prado. Esta é um dos maiores quadros das pinturas negras, com 1m40 de comprimento. Por causa disso, esta é uma das telas que está em piores condições de toda a coleção.
Judith y Holofernes
Indo para a parede oposta à porta do piso térreo da Quinta del Sordo, temos dois quadros separados por uma janela. Um deles é Judith y Holofernes.
Nesse caso, não há qualquer dúvida sobre o que está retratado na imagem, já que este é um conhecido conto do Livro de Judite do Antigo Testamento. Judite de Betúlia seduz e decapita o Rei Holofernes, que se não fosse por isso, iria atacar o povo de Judite.
A imagem é a representação particular da visão de Goya sobre este evento. Muitos críticos alegam que esta era a forma como o pintor compreendia sua relação com a sua amante, Leocadia Zorrilla. Também pode-se presumir que era assim como o artista via as relações entre os homens e as mulheres.
Outros, ainda analisam a tela de forma mais profunda, colocando essa imagem como representação da castração, já que Goya tinha entorno de 70 anos e sua amante era bem mais nova que ele. Vale ressaltar que ela morava junto ao pintor na Quinta del Sordo.
O que chama a atenção para este quadro é que, diferentemente da maioria das outras pinturas negras, este parece estar em equilíbrio, em uma cena quase teatral, onde nem o sangue do rei pode ser visto na imagem. Esse fato é o que colabora para que esta seja a representação da relação entre Goya e Leocadia.
Saturno devorando a su hijo
Deixamos para o final o quadro mais impactante de todas as pinturas negras. Compartilhando a parede com “Judith”, temos Saturno devorando a su hijo.
Ou simplesmente denominada como “Saturno”, este é o quadro que me inspirou a fazer este texto. A expressão do deus Cronos, Saturno para os romanos, é algo que não é possível encontrar em qualquer quadro das pinturas negras ou da própria obra de Francisco de Goya. Mas para entender o que significa esta tela para o pintor em questão, devemos antes compreender o que significa este ato de Saturno devorando seu filho.
Na mitologia grega e romana, Cronos, jovem titã, filho de Urano e Gaia, é o deus do tempo. Mas ele não é aquele que faz o tempo andar, mas sim aquele que destrói, assim como o tempo faz com todas as coisas, devorando a vida.
Cronos matou seu pai para ser o senhor do céu e governar toda a existência, começando a era dos titãs. A humanidade recém-nascida viveu a “Idade de Ouro” durante esse período. Em uma certa vez, Cronos viu sua maldição em um oráculo. Seria destronado por um dos seus filhos. Sua irmã, que também era sua esposa, Reia, deu à luz à seis filhos, três homens e três mulheres. Porém, como tinha medo que um desses o faria perder o poder, comia os filhos logo ao nascerem. Com exceção de um.
Reia engana Cronos ao dar luz ao último filho ao enrolar uma pedra em um pano, ao qual ele comeu sem perceber a troca. Este filho cresceu e resolveu vingar-se de seu pai. Não só o aprisionou no Tártaro, o inferno da mitologia grega, como também removeu todos seus irmãos da barriga de Cronos. Além disso, deu fim à era dos titãs, iniciando a era dos novos deuses do Olimpo. Esse filho era Zeus.
O que causa essa impressão estranha ao ver o quadro de Goya é que ele retratou esta mitologia de forma muito real. Saturno, aparentemente nu, está em uma posição que não respeita a anatomia humana, com um joelho torto e uma perna aparentemente maior do que a outra. Além disso, Saturno parece um maníaco ao devorar um dos seus filhos, um ser que poderia ser encontrado em qualquer canto de uma escura masmorra.
O sangue escorre por um dos braços de seu filho, que já tem a cabeça e o outro braço devorado. Este filho, representado de forma adulta, é outra razão para esse incômodo que pode surgir ao observador desta tela.
De acordo com a mitologia, Cronos comia seus filhos logo ao nascer e este que está sendo devorado é adulto, ou seja, pode ser o próprio Zeus, dando uma nova interpretação para a mitologia.
Mas assim como todas as pinturas negras, que além de compartilhar as mesmas técnicas e cores, também compartilha os mesmos temas. Zeus é a esperança de mudança no governo dos deuses, é ele quem vai destronar seu pai e dar um fim à era dos titãs no Olimpo. Porém, essa esperança é comida ao olhar de desespero de Cronos, quase que como se fosse uma surpresa que um dos seus filhos estivesse vivo. Esta seria uma analogia ao que o próprio Goya estava vivendo. Não havia qualquer esperança na vida do pintor. Sua amada provavelmente não estava feliz com ele, sua desilusão política e seus problemas psicológicos e de surdez só agravaram a tristeza de Goya.
A posição dos quadros na Quinta del Sordo pode haver um certo propósito. O fato desde quadro compartilhar a parede com “Judith” também pode ser um significado da sua impotência em relação ao seu sentimento por Leocadia. Ou até mesmo pelo engano que foi seu relacionamento com ela.
Segundo Freud, a cena de Saturno retratada por Goya representa a melancolia e a destruição, características muito presentes em todas as pinturas negras. Com uma expressão terrível, o pintor nos coloca diante a um horror canibal dos maxilares abertos, dos olhos brancos, do gigante envelhecido e da massa disforme do corpo sanguentado de seu filho.
Este é um dos quadros que melhor foi conservado ao transferir do reboco da casa para as telas, como podemos ver na fotografia feita por Laurent.
Por isso, ver esta imagem ao vivo no Museu do Padro em Madrid é uma experiência a parte. Ele está localizado junto com as outras treze telas que compõem a coleção das pinturas negras. Para mais detalhes do Museu, da coleção e de cada quadro, recomendamos visitar o site oficial do Museu do Prado e mais especificamente da sala onde estão todos esses quadros analisados neste texto. O link para o acesso do site em espanhol é o seguinte: https://goo.gl/zfdC1C
Vale ressaltar também do vídeo feito pelo canal Nerdwriter1 que também foi uma inspiração para realizar esta pesquisa. O vídeo falar deste quadro em específico e um pouco das outras obras de Goya. O vídeo possui legendas em português que podem ser ativadas no próprio YouTube.
del Sordo
Francisco José de Goya y Lucientes foi um dos grandes pintores que o mundo já viu. Não apenas por ter produzido um número espantoso de obras, mas também por representar a transição entre estilos de artes plásticas. Ele é justamente o caminho do clássico para o moderno.
Suas pinturas negras foram o marco de uma das suas piores fases da vida e uma das mais brilhantes de sua carreira. O fato dele não ter deixado qualquer registro sobre esta coleção e ter produzido 15 pinturas nas paredes de uma casa envolta de mistérios é o que faz dela tão especial. Porque quem vai fazer as interpretações dos quadros é você, o observador.
O que tentei fazer aqui foi uma análise detalhada do que poderia representar cada imagem para seu autor, baseada em diversas evidências. Mas cabe a você interpretar esses quadros de um pintor surdo, sem esperanças para o futuro e que permaneceu dentro de uma casa isolada produzindo imagens que chegam até você nos dias de hoje e quem podem falar não apenas sobre ele, mas sobre a sua própria vida.