Seja estando em choque, batendo palmas, criticando ou admirando o novo clipe de Childish Gambino, fato é que estão falando de This Is America, single lançado junto com um vídeo lotado de referências da cultura afro-americana. Como havia anunciado em um outro post, repito aqui as palavras: precisamos falar de Donald Glover.
Não vamos tratar aqui das milhares de referências que o clipe têm e que todos estão comentando nas redes. Mas sim, vamos fazer uma análise do contexto social e político que abriu as portas para a chegada de This Is America. Espero que no final do texto tenhamos descontextualizado todas as suas primeiras noções desse vídeo e música.
Isso é América
Esta é a América, não vacile. Para um afro-americano, esta é a mensagem. Para entender o racismo nos EUA, temos que ir aos números. A população negra por lá não é como aqui no Brasil, onde a população declarada negra e parda é maior que a população branca. Nos Estados Unidos você é branco ou negro, não tem essa denominação de pardo para o governo norte-americano. Nos EUA, por volta de 77% da população é branca e mais ou menos 13% é negra.
Ou seja, se comparar com Brasil em termos de proporção, é como se os negros nos EUA fossem os como os indígenas aqui. São a minoria.
Por isso, a eleição de Barack Obama foi tão relevante e tão importante para a história norte-americana. Um sujeito vindo de um grupo minoritário, seja ele numericamente ou socialmente falando, conseguiu alcançar um dos cargos mais importantes do mundo. Você consegue imaginar isso acontecendo no Brasil?
Porém, esse caso é daqueles um em um milhão… Porque fato é que o racismo nos EUA é algo tão complicado quanto aqui. Mas por agora vamos deixar de lado o caso brasileiro para analisar apenas o que acontece nos Estados Unidos, para sim compreendermos melhor a importância e a genialidade de This Is America.
A cultura afro-americana é muito particular e é como nós vemos em filmes, séries, ouvimos nas músicas, lemos em jornais e livros: é segregado. Literalmente existem bairros que só moram negros, existem gírias e termos que são próprias deste grupo étnico, existe uma forma de expressão cultural que só pertencem ao negro norte-americano. E tudo isso causa um certo barulho nos EUA.
Por terem uma cultura tão própria, os negros são vistos nos Estados Unidos, pelos brancos, como cidadãos de segunda classe. Por lá a coisa funciona mais ou menos como aqui: possuem uma origem vinculada à escravidão e a maioria da população negra não vive nas mesmas condições que os brancos.
É como se o negro norte-americano estivesse sempre a um passo da criminalidade porque ele sempre esteve marginalizado. E é nisso que a atual cultura afro-americana se abraça: Se você é negro, tem que ser um “gangster”.
Quantas músicas famosas de rap nos conhecemos e que não trata sobre isso?
Mais um…
Para fechar…
(vale procurar a letra dessas músicas para entender melhor o que esses artistas estão querendo transmitir)
Peguei os mais famosos por serem justamente os mais óbvios, porque se formos no rap mais underground, essa realidade fica mais explícita.
Essa tensão entre negros e brancos é vivida nos EUA desde a época da escravidão e é mais agravada nos estados do sul do país, já que lá essa prática demorou mais tempo para ser abolida.
Na América, o branco enxerga o negro como um criminoso e o negro vê no branco o inimigo, aquele que o impede de alcançar posições mais altas na sociedade. Por isso incomoda a tantos ver um negro como policial, é como se ele estivesse traindo o grupo. Existe uma expressão em inglês própria para isso: black in blue. Azul é a cor da maioria dos uniformes policias nos Estados Unidos.
E estes negros policiais ficaram em uma situação muito delicada quando uma dessas tensões explodiu mais recentemente.
Não faz muito tempo, negros norte-americanos tem sido mortos por policiais em situações que são no mínimo controversas. Para se ter uma ideia, o número de negros mortos por policiais é o triplo em comparação com brancos. E se fizermos uma análise de onde foi a maioria desses crimes contra negros, encontramos que os estados do sul são, em sua maioria, os locais onde ocorrem tamanha barbaridade.
Foi em um desses estados que tudo começou. Em 26 de fevereiro de 2012, no estado da Florida, Trayvon Martin, um jovem norte-americano negro de apenas 17 anos, foi assassinado em Sanford por um guarda de bairro voluntário, branco por sinal. Trayvon estava desarmado e estava voltando para casa após comprar algumas coisas em uma loja de conveniência. Sua morte foi a que deu origem ao movimento “Black Lives Matter”, traduzindo para o português: Vidas Negras Importam.
Este movimento organizou e ainda organiza diversos protestos por todo o país e se popularizou em 2013, com a hashtag #BlackLivesMatter em diversas mídias porque neste ano o assassino de Trayvon Martin foi absolvido pela justiça norte-americana. Mais casos aconteceram, como o assassinato de Michael Brown em 2014, um jovem negro de 18 anos que foi morto por um policial também branco no estado do Missouri. Assim como Trayvon, Michael não portava armas e não tinha antecedentes criminais.
Os anos seguintes foram marcados por mais casos similares como esse, tornando o movimento Black Lives Matter mais forte, levando mais protestos às ruas, o que acabou gerando mais violência por parte da polícia, que possui em sua grande maioria, soldados brancos. As ações para reprimir essas manifestações foram tão complicadas quanto os assassinatos em si, já que teve casos de manifestantes que foram mortos ou gravemente feridos em diversas cidades onde ocorreram os crimes.
This Is America
O vídeo e a música This Is America é consequência direta de todo esse contexto político e mostra em suas cenas muito bem dirigidas por Hiro Murai (mesmo diretor de diversos episódios de Atlanta) o que representa o Black Lives Matter. Um exemplo: as armas no videoclipe são mais bem tratadas que os corpos dos negros, que são simplesmente empurrados de um canto para o outro.
Outra referência que está em diversos posts pela rede é a do cavalo branco e seu cavaleiro que representariam a morte. Notou que ele aparece perto de um carro policial?
No clipe, Childish Gambino dança várias vezes com estudantes, remetendo aos assassinatos que citamos anteriormente, já que eram jovens.
É claro que a violência é o principal tópico do clipe, mas o que seria dessa violência se não fossem as armas? Como dissemos, elas são bem cuidadas no clipe, sempre novas e modernas. Atualmente nos Estados Unidos está ocorrendo diversos debates sobre a política de armamento da população. Como muitos de vocês já sabem, em alguns estados do país é autorizado que o cidadão comum possa andar armado. Nunca se debateu tanto sobre o desarmamento nos EUA. Para muitos, essa é a causa de diversos casos violentos que têm ocorrido em diversas partes do território norte-americano.
Em uma dessas cenas, o coral que canta uma das estrofes da música é brutalmente metralhado por Gambino. Muitos estão falando que esta é uma referência à brutal chacina ocorrida em uma igreja na cidade de Charleston, no estado da Carolina do Sul, quando um homem branco matou nove afro-americanos no dia 17 de junho de 2015. Depois que Childish Gambino mata o coral, vem o refrão: This is America.
Teddy Perkins
Como disse no outro post, falar de Childish Gambino é falar de Donald Glover. O artista por trás de tudo isso recentemente estreou um dos episódios mais geniais que assisti em uma série. Se trata do sexto episódio da segunda temporada de Atlanta: Teddy Perkins. Dirigido pelo mesmo Hiro Murai de This Is America, o episódio foi escrito por Glover e estreado por ele também.
Com um clima de “Corra!” com pitadas de comédia, temos um roteiro genial que remete a essa mesma contextualização que estamos fazendo dos Estados Unidos e da obra de Glover. Esse episódio por si só merece um texto exclusivo para ele no nosso site, mas deixamos isto para outra hora.
O que importa por agora é que nesse episódio, Donald Glover interpreta Teddy Perkins, um homem branco, que claramente nos remete a Michael Jackson. Nesse caso, Glover faz o que os americanos chamam de “whiteface”, ou seja, maquiou sua pele para ser branco, uma crítica óbvia ao terrível “blackface”, muito comum em apresentações do século 19. Uma prática extremamente racista…
Teddy Perkins é um homem branco que vive do seu passado musical, quando era um artista negro. É um homem quebrado por dentro e que, com sutil violência, apresenta mais uma vez a realidade dos negros nos Estados Unidos.
Concluir o texto com esse episódio é na verdade mais uma tentativa de colocar holofotes na obra de Donald Glover. Porque a sensação que fica é a de estarmos presenciando a história. Glover, com toda a sua genialidade como músico, roteirista, ator, um verdadeiro artista, tem registrado e denunciado uma realidade vivida em nossos tempos e que nos faz pensar sobre como nós vemos o mundo.