Juliette Binoche em Deixe a Luz do Sol Entrar

Deixe a Luz do Sol Entrar: O Que Claire e Juliette Estão Aprontando?

Deixe a Luz do Sol Entrar: o que esperar de uma comédia romântica de Claire Denis com Juliette Binoche e Gerárd Depardieu? A curiosidade foi tanta que decidi até ver o trailer, coisa que habitualmente não faço.

Mais inconclusivo ainda, o trailer sugere desventuras amorosas à la comédia romântica americana. Conhecendo o trabalho de Binoche e, especialmente, Denis, fica difícil imaginar que elas fariam algo assim. Binoche, protagonista de uma obras-primas do cinema como: Cópia Fiel (Abbas Kiarostami, 2010). Denis, que conseguiu se consolidar como diretora num dos maiores celeiros de cineastas, a França, com filmes como Bom Trabalho (1999) e 35 Doses de Rum (2008). O que elas estariam tramando, afinal?

Deixe a Luz do Sol Entrar

Denis e Binoche transformaram o óbvio e o clichê em um filme legitimamente francês e inteligente. Deixe a Luz do Sol Entrar tem uma narrativa bem delimitada e assertiva dentro de uma certa realidade feminina. Acaba indo fundo em questões muito particulares da intimidade feminina. Mas é claro que, de forma análoga, serve para qualquer um e em diversas circunstâncias: nem sempre nos valorizamos e conseguimos perceber nossa conduta com uma visão crítica. E o resultado é simples: equívocos.

Juliette Binoche em Deixe a Luz do Sol Entrar
(Reprodução)

É um clichê da auto ajuda falar de beleza interior, de saber o que quer, de não se sujeitar a qualquer coisa. Mas, na prática, enfrentamos muitos desafios, mesmo ouvindo esses conselhos. Me parece que ainda fica mais complicado quando a busca por um grande amor encontra o peso da idade. É comum encontrarmos pessoas que, ao chegar em uma certa idade, buscam um relacionamento estável. Mas essa busca pode ser complicada. Ou até mesmo desesperadora, em alguns casos. E é dentro desse panorama que Claire Denis e Christine Angot escreveram Deixe a Luz do Sol Entrar.

Mais uma vez: Personagens Complexos

Dentro do desespero da protagonista, o que esperar? Se fosse uma narrativa americana, ela encontraria um grande amor e teríamos 95% de chance de vê-la com um boy para chamar de seu e viver o “felizes para sempre”. Mas “C’est France, mon amour”. As coisas geralmente não são tão simples no velho continente.

Já citei na crítica sobre o filme Lady Bird algo que observo nos filmes contemporâneos que chamo de complexidade de personagens. Mais do que dicotômicos, bons ou ruins, esses personagens normalmente possuem uma profundidade maior. Eles possuem tanto qualidades quanto defeitos, em uma tentativa de aproximá-los da complexidade humana: todos possuímos imperfeições. Nem por isso somos piores ou melhores. Só é um fato que costumamos ignorar. Entretanto, na prática cinematográfica, nem sempre isso sai bem. É difícil imprimir esse conceito. Requer desde um roteiro sólido até uma boa edição, passando por uma interpretação e uma direção rigorosa.

Normalmente, o problema é que até vemos essa intenção, mas não fica claro no filme qual a crítica ou a posição do diretor com relação às postura dos personagens. Às vezes fica a dúvida: essa conduta meio estranha do protagonista… o diretor está exaltando-a ou criticando-a? A dúvida se o diretor estava sendo sarcástico ou não pode ser um problema. Isso acontece um pouquinho em Lady Bird.

Um Anti-Exemplo

Mas em Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, isso fica bem evidente. Digo isso não só pela minha própria percepção, mas por mais de uma vez encontrar comentários tão díspares: “nossa, o filme evidencia muito as contradições da personagem” ou “nossa, o filme exalta tanto a protagonista. Que exemplo de mulher!”.

Partindo do pressuposto em que é natural do ser humano extrair dos filmes, histórias, imagens e sons, conteúdo para nossas vidas, é estranho quando isso acontece. Em outras circunstâncias, poderíamos chamar isso de narrativa aberta. Ou até mesmo entender isso como parte do filme. Mas, no caso de Aquarius, seja pela figura do diretor, seja pela construção do filme, não me parece o caso. O filme inteiro é construído em cima de incisivas críticas. É um filme de posicionamento claro. Só não dá, às vezes, pra ter certeza qual é.

Não é o caso de Deixe a Luz do Sol Entrar. Temos uma personagem complexa, mas com um posicionamento claro: o desespero.

Isabelle

Se Clara (Sônia Braga), em Aquarius, fica entre uma mulher contraditória e uma mulher maravilhosa, Isabelle (Juliette Binoche), em Deixe a Luz do Sol Entrar, é basicamente uma mulher perdida e desesperada. É isso que vemos durante todo o filme. Porém, isso não a torna menos encantadora, humana e admirável. Não existe nenhuma tentativa de glorificar Isabelle. Ela é o que é. Nem por isso ela fica menor. Criamos empatia pela protagonista e sua busca angustiante por um novo amor.

Juliette Binoche em Deixe a Luz do Sol Entrar
(Reprodução)

Deixe a Luz do Sol Entrar é um filme inteligente graças à construção psicológica da personagem, do roteiro, da direção e da atuação, tudo em conjunto. A construção da personagem consegue transmitir aquela sensação: nossa, eu conheço alguém parecido. As circunstâncias nos fazem recordar: já vivi ou conheço alguém que viveu algo semelhante. E a gente começa a torcer pela personagem: esse cara não. Esse cara pode ser. Ou um carinhoso: fica com esse, sua burra. Logo antes de: de novo esse lixo?

Isabelle é uma heroína e anti-heroína. Seu anti-exemplo é um tapa na cara: precisamos mudar. Mesmo que não saibamos como. Ironicamente, em nenhum momento Isabelle de fato deixa a luz interior entrar. Mas, ela não deixa de tentar.

E a (maravilhosa) cena final completa a narrativa do filme de forma bem peculiar. É ela que torna o filme uma verdadeira comédia romântica à francesa. Quando achamos que, finalmente, a protagonista vai encontrar uma resposta… só temos certeza que ela não encontrou conclusão alguma. A busca por um grande amor pode ser desesperadora e desoladora mesmo. Deixar a luz do sol entrar pode ser somente um bom título para uma auto ajuda qualquer. Nem sempre a realidade é um conto de fadas. Mas, igual Isabelle, continuaremos procurando e buscando preencher nosso interno com alguma luz.

Dessa forma, a personagem cria vida e envolve quem vê. Mesmo com o estilo próprio de Claire Denis.

Claire Denis

Devo confessar que, apesar de ter gravado na memória cinematográfica um grande apreço por 35 Doses de Rum (indicado para os iniciados à cinematografia contemporânea), eu não esperava um trabalho tão congruente assim de Denis. Preconceito a parte, Deixe a Luz do Sol Entrar parecia um filme bem mais leve do que os outros dela. Mas foi grata a surpresa em encontrar os elementos característicos de seus filmes. Os trens. Os passeios de carro. Alex Descas. As elipses narrativas. Estava tudo lá.

No filme de Claire Denis, Juliette Binoche.
(Reprodução)

Como disse, sou meio suspeito por gostar há anos da Claire Denis. Por isso, indiquei o filme para alguns amigos não tão intelectualizados na arte cinematográfica para ver o que eles acham da construção da diretora. E, para minha surpresa, não precisa ter visto O Espelho (1975, Andrei Tarkovsky) de trás para frente numa encruzilhada para entender o filme. Não é um filme qualquer em termos de direção e construção. Mas também não deixa de ser um filme simpático. Ter uma grande atriz como Binoche com certeza ajuda também. Com isso, ficou muito mais leve as grandes elipses narrativas, as construções menos óbvias, o grande volume de personagens e as diversas circunstâncias distintas criadas.

Porque você deveria ver

Recomendo Deixe a Luz do Sol Entrar tanto pelos aspectos técnicos do filme quanto pelas reflexões geradas. Tecnicamente, o filme traz alguns elementos incomuns em uma comédia romântica, gênero clássico no mainstream. Vale a pena assistir. Caso você se sinta perdido em alguma busca na sua vida, narrativamente o filme pode ser bem sugestivo. Se além disso tudo, você estiver meio desesperado por um amor, aí o filme vira quase obrigatório.

No mais, deixe a luz do sol entrar. Ou o que isso signifique, na prática.

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