O que não pode ser visto em uma imagem? Toda imagem tem seu elemento subliminar? As artes visuais também dizem sobre o invisível? Essas foram algumas das perguntas que fiz quando comecei a me aprofundar em um estudo mais detido sobre essa magnífica forma de expressão.
Ao tratar de artes visuais estamos falando que ela, na maioria das vezes, é apreciada por meio da visão. Formalmente são essas as artes visuais: pintura, desenho, gravura, escultura, cerâmica, fotografia, design e algumas outras.
Porém, o que não pode ser visto nas artes visuais?
Essa pergunta foi feita para mim em uma aula da pós-graduação sobre artes visuais na Escola de Belas Artes da UFMG por uma querida professora. Em sua matéria eram debatidos textos que analisam as nuances políticas das imagens, principalmente o que elas representam. E em um determinado momento, essa pergunta foi feita. O que não está sendo representado em uma imagem?
Baseando-se em novos pensadores da imagem, como Georges Didi-Huberman, que coloca em um artigo intitulado “Devolver uma imagem” a seguinte ideia:
“Por exemplo, não é inútil se perguntar de que exatamente uma imagem é imagem, quais são os aspectos que aí se tornam visíveis, as evidências que apareceram, as representações que primeiro se impõem. Essa questão tem, ainda por cima, a vantagem de suscitar o interesse pelo como das imagens, outra questão crucial. E depois, existe a questão totalmente tola – e totalmente maldosa, na realidade, quero dizer a questão política – de saber a quem são as imagens.”
E usando fundamentos de outros autores mais clássicos, como Jean-Luc Nancy, que em seu artigo “Imagem, mímeses & méthexis” escreve:
“Quando se diz de um retrato que ele só falta falar, se evoca sua privação da expressão verbal. Essa privação se manifesta como a única falta que separaria a representação da vida, e nos transporta já a um sentimento ou a uma sensação da fala do retrato. A falta que o afeta é designada ao mesmo tempo como considerável e imponderável, na medida em que sua anulação parece acessível e mesmo iminente. De fato, o retrato fala, ele já está prestes a falar, e ele nos fala a partir da sua privação da fala. O retrato nos faz ouvir um falar antes ou depois da fala, o falar da falta de fala. E nós o compreendemos, ele nos comunica esse dizer, seu sentido e sua verdade. De maneira simétrica, desejamos entender a voz da ausência ou a ausência.”
Assim, fui encontrando respostas para essa pergunta sobre o que não pode ser visto nas artes visuais e agora compartilho elas com vocês.
O que não está na imagem?
Para mim, a melhor forma de compreender a resposta para essa pergunta e ao mesmo tempo entender o que é esse invisível em uma imagem é utilizando a fotografia. Hoje em dia, todos nós possuímos uma câmera fotográfica nos bolsos e registramos diversos momentos das nossas vidas. Ou também colocamos em imagem locais legais que nós fomos, eventos que valeram a pena e diversas outras situações que o mundo permitem serem registradas pelas lentes de uma câmera.
Suponhamos que você visite as Cataratas do Iguaçu, uma das grandes maravilhas naturais que o nosso país possui. Ao contemplar aquela quantidade imensa de quedas, 275 para ser mais específico, você não sabe por onde começar os registros fotográficos. Primeiro porque ficamos paralisados com tamanha beleza, segundo que há tantas quedas que fica difícil escolher qual é a melhor para o registro e por fim, como colocar toda aquela quantidade de água e cachoeiras em uma única foto? Só assim para mostrar ao outro a sensação fiel que é estar perante tal local.
Porém, a câmera do celular não consegue captar aquele enorme ambiente repleto de belezas naturais. E o que fazemos? Tiramos foto de cada parte daquele lugar. Foi o que eu fiz quando visitei as cataratas do Iguaçu em 2016.
Esta foto não mostra a completude daquele lugar, mas selecionei ela porque achei que era a mais bonita. Não fazemos o mesmo quando postamos uma foto no Instagram? Agora, o que não está nessa foto?
Quando eu recorto uma parte da minha visão para caber em uma tela de 13,8cm X 6,7cm eu naturalmente estou excluindo todo um universo de objetos que não cabem na minha moldura. Tanto que em Foz do Iguaçu existe a possibilidade de fazer um passeio de helicóptero para você ver a completude das quedas e só de uma altura razoável que será possível registrar todas as 275 quedas do rio. E mesmo assim, você estaria excluindo outras coisas, como por exemplo o centro de atenção ao visitante que é nas proximidades.
Fotografar por si só é excluir, que por outro lado, também é escolher. Cabe ao fotógrafo escolher o que quer colocar em sua imagem. E é justamente isso que todo artista visual faz: escolhas.
Porém, muitas vezes o que não está visível em um quadro pode nos dizer muito mais sobre o que está nele. Vamos utilizar um exemplo que gosto muito, já que para mim ele é muito eloquente.
Rue de Paris
Esse quadro é uma das mais famosas pinturas do modernismo do final do século XIX. Ela expressa o otimismo em relação à vida urbana moderna, elemento presente em muitas obras de diversos artistas desse mesmo período. Nesse caso, a escolha do local, composto pelos amplos bulevares não é aleatória. O artista queria representar aqui as belezas do que é o modernismo.
O modernismo rejeita a tradição, é um movimento que acredita no futuro. Possui diversas regras artísticas, era linear e sistemático e geralmente expressa elementos mais sérios e venturosos. E conseguimos identificar todos esses elementos neste quadro de Caillebote. Ademais, existe uma vontade de seu autor de mostrar uma Paris bela, que apesar da adversidade da chuva, continua com o seu natural “charme”. Porém, persiste o questionamento: o que o move a optar por um lugar? Por que colocar um casal sofisticado no foco da imagem? O que faz essas pessoas estarem na imagem e não outras? O que não está no quadro?
Nesse caso, o que está excluído é uma Paris esteticamente fora das regras do padrão modernista; ou seja, uma população mobilizada, como os trabalhadores que criaram a Comuna de Paris; a confusão que vivia a França e naturalmente sua capital, com o fim da monarquia e a inauguração da Segunda República Francesa.
Não estamos tratando aqui sobre a existência de uma Paris verdadeira em contraposição a uma que seja falsa. Todas são reais. Por outro lado, pode-se afirmar que Gustave Caillebotte pretendeu veicular uma ideia específica com sua obra, ideia esta que coincide com os preceitos estéticos do modernismo ao representar uma Paris limpa de todos os problemas que uma grande cidade do século XIX possa ter e que seu maior transtorno se restrinja ao tempo chuvoso…
As pessoas que compõem a imagem demonstram ser de uma elite por causa de suas vestimentas, acessórios e por estarem em uma ambientação própria da realidade deles. A exclusão dos outros cidadãos compõe o quadro indiretamente, o não existir deles consegue nos dizer algo. Consequentemente, esta pintura divulga um ideal padronizante e se reduz apenas a uma pequena parcela da realidade política da época. Caillebotte quer evidenciar que quem participa da vida da cidade são pessoas da alta sociedade.
O que ver na imagem?
Isto nos faz chegar a uma conclusão quase que evidente: arte é escolha.
As escolhas de um artista são arbitrárias. O que está expressado em um quadro, por mais padronizado ou por mais crítico que ele seja, existem elementos que não estão neles e que, muitas vezes, foram conscientemente retirados ou excluídos daquela imagem. Reproduzir o que é considerado esteticamente belo ou feio também é uma outra opção feita pelo artista.
Uma imagem sempre vai ser um recorte, é impossível compor a totalidade das coisas em uma moldura. E tal recorte pode ser usado também politicamente. Ou seja, a arte também pode ser política.
Por isso, na próxima vez que for a uma exposição ou a algum museu de arte, pense nessa pergunta: o que não está nesta imagem? Com certeza a resposta que você encontrar fará com que você aprecie aquela obra de outra forma, fazendo com que ela tenha um real significado para você. E só por isso a arte já cumpriu com o seu grande objetivo, que é se comunicar com seu público, seja quem for ou como for.