a favorita 1

A Favorita

Em um ano de filmes interessantes no Oscar, A Favorita não superou as expectativas. O diretor do filme, Yorgos Lanthimos, acabou errando um pouco a mão com uma direção abaixo de sua média e escolhendo um roteiro desinteressante. Nessa crítica iremos fazer algumas reflexões sobre como A Favorita talvez não seja tão favorita assim para o Oscar esse ano.

Pôster na Versão Inglesa de A Favorita
Pôster na Versão Inglesa de A Favorita

Atuações

O grande ponto alto do filme são as atuações. Olívia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone seguram o filme inteiro em alta performance. O papel da rainha Anne, interpretado por Colman, não é nada fácil, com várias mudanças de ânimo e uma personagem de personalidade peculiar. Mesmo assim, seu trabalho notável faz com que o filme siga interessante e intrigante. O mesmo vale para Rachel Weisz e Emma Stone, que souberam entrar bem no jogo de poder de seus papéis e construíram boas personagens.

Graças à boa atuação das atrizes escolhidas por Lanthimos, A Favorita é um filme até agradável de se assistir. É um filme de interpretação intensa onde os personagens conduzem a narrativa. O problema é que, infelizmente, ele não mantém o alto nível em outros setores.

Reprodução

Direção

Desde A Lagosta (2015), coloquei Yorgos Lanthimos na lista de cineastas a se acompanhar. Ele é um dos únicos diretores, junto com Tarantino, que consegue transformar algo que poderia ser desastroso em algo… interessante: abusar das referências.

A partir das entrevistas com as atrizes do filme, o IMDb criou um vídeo onde conseguimos ver um pouco de processo criativo de Lanthimos. A precisão com que sugere as referências de filmes para atuação revela o que possivelmente é de praxe para ele: se inspirar em outros filmes.

Pesar a mão no uso de referências, à princípio, não é algo ruim nem bom. De um lado é um método de criação bem consistente, afinal usa como base resultados já satisfatórios. Também dá um quê metalinguístico para o discurso do filme. A “linguagem” cinematográfica é maravilhosa e não tem problema nenhum em reafirmar ela.

A influência de trabalhos alheios funciona muito bem em A Lagosta, por exemplo. Neste filme ele usa, até de forma irônica, uma direção à la Wes Anderson e um feeling década de 10, para criar uma realidade propositalmente insossa. No caso, para o meu gosto, ficou até melhor do que as referências “originais”. O que tinha tudo para ser um filme “moderninho” virou um filme super interessante onde a direção e o discurso do filme interagem perfeitamente.

O Roteiro Guia a Direção

O problema de carregar a mão nas referências é justamente essa desconexão do contexto original dos filmes de origem. Em geral, o roteiro indiretamente indica algum viés para a direção do filme. É a história que manda nisso. Isso não significa que um diretor tem que se adaptar à todas as histórias. Não. O diretor pode escolher quais histórias quer contar. Por isso que os diretores clássicos, em geral, ficavam dentro de um gênero de filme específico. O diretor gosta de um tipo de história que vai combinar com um tipo de direção. E pronto.

Ao tirar as ideias de direção do contexto, a chance de cair em um pastiche estranho é muito grande. E em muitos casos isso ocorre. Existe até uma alcunha informal para isso: pastiche pós-moderno. É muito difícil copiar e ficar bom.

De qualquer forma, Yorgos Lanthimos consegue utilizar referências variadas sem cair em caricaturas estranhas. Isso porque ele usa as referências como inspiração, mas as reinsere em novos contextos na história. Isso é impressionante. E fica evidente o quanto de técnica ele tem. Em A Favorita vemos excelentes exemplos de como o roteiro, a direção e a montagem devem juntos formar uma história só.

Em várias cenas vemos montagens em paralelo, onde as ações acontecem simultaneamente em diferentes lugares, utilizando a trilha de áudio, as falas e a filmografia… não é algo muito comum hoje em dia, mas muito efetiva.

As referências para Lanthimos acabam virando, no fundo, bagagem para um bom trabalho. E talvez essas referências só passem na mente dos cinéfilos mais puristas (Prazer, Fabio).

A direção de A Favorita só não é boa por um motivo: o roteiro.

Reprodução

Os Roteiros de Hoje em Dia

Em outros textos no Descontexto já abordamos um pouco sobre o roteiro cinematográfico. Em Lady Bird ou em Me Chame Pelo Seu Nome aborda-se mais sobre como o discurso é construído pela história. O problema em A Favorita é que o discurso é meio disperso e a construção da história é ainda mais estranha.

Todo filme tem um discurso. Ou melhor, podemos atribuir um discurso a história e isso é cada vez mais comum. E não importa qual é a intenção original. Podemos entender da maneira que quisermos, basta haver fatos para tal.

Diante desse cenário, o que realmente A Favorita quis passar? Existem várias opções:

  1. Uma história de busca pelo poder;
  2. Fortalecer a imagem de que mulheres não são só coadjunvantes na política. Demonstrar como sobram mulheres fortes e que elas inclusive tem a força para lutar pelo poder;
  3. Uma história sobre a competitividade feminina;
  4. Uma história de homens bundões;
  5. Uma história de superação;
  6. Uma história onde, podemos até nos enganar com nossos micropoderes, mas não percebemos que quem está no topo sempre estará no topo;
  7. Uma história onde descobrimos que os que parecem mais frágeis, na verdade dominam todo mundo…

Na verdade pode ser algum desses, nenhum ou todos. O filme simplesmente não faz muito sentido como um todo. As ações não levam a uma constatação linear ou simplesmente emocional.

Teoria Inventada Sobre o Roteiro Contemporâneo

Percebo que hoje no mercado roteirístico existem algumas tendências bem definidas. Para não perder o fio da meada, tentarei me limitar numa análise dos filmes concorrentes ao Oscar em 2019.

Existe a tradicional história com viés realista. Mas esse tipo de narrativa tem caído em desuso porque é muito fácil criticá-lo o julgando como criador de estereótipos e preconceituoso. É o caso de Roma e Nasce uma Estrela.

Ao recortar uma realidade específica, é como se o diretor dissesse, por exemplo: toda mexicana indígena é serviçal e a chance dela se tornar mãe solteira é altíssima… isso é muito normal e é assim que a realidade é. E, se isso fosse verdade, seria preconceituoso. Para mim, não é bem assim. Principalmente em Roma, que articula muito bem a poesia, a narração linear e os personagens. Roma é o único filmão no Oscar 2019. Mas entendo quem vê um olhar masculinizado no filme. Esse tipo de história já foi usada para muita coisa alienante. Na crítica de Nasce uma Estrela problematizei algo nesse sentido ao falar do roteiro do filme.

Tem também as histórias tradicionais mas com viés cômico, fantástico ou metalinguísticos. É o caso de Infiltrados na Klan ou Vice, por exemplo. São histórias de cunho linear e direto, mas que não tem tanta pretensão de fazer um recorte tão verossímil da realidade, como se o filme não fosse uma construção narrativa. Por trás da sátira, da fantasia e da “linguagem” cinematográfica conseguem não desenvolver com o espectador um compromisso fiel de verossimilhança. Talvez por isso, conseguem ir até mais forte no discurso político.

E tem também os filmes de: como eu gostaria que fosse na realidade. É o caso de Pantera Negra e A Favorita (apesar de também usarem a narrativa tradicional cômica/fantástica). São filmes que afirmam o que gostaríamos de ver e ouvir. E esse tipo de narrativa tem sido a grande hype do momento. O povo negro sabe que não podemos contar com uma civilização super avançada na África capaz de dominar o mundo. E sabemos que, por mais que muitas mulheres ocupem lugares em posições de poder, estamos muito aquém nesse sentido. As rainhas Anne, Elizabeth e Mary são minorias entre as dezenas reis a sentarem no trono inglês, por mais marcantes e imprescindíveis que sejam.

A Voz do Filme é a Voz do Povo

De qualquer forma, os filmes que mostram uma realidade desejada e necessária tem um grande apelo popular. Primeiramente porque ele retratam como as pessoas gostariam que fosse o mundo. E, ao ver isso, as pessoas ficam felizes. E fazer com que as pessoas saiam felizes é um dos objetivos de um filme.

Em segundo lugar porque é bem difundido o fato de que precisamos representar o mundo de forma diferente. De nada adianta continuar representando a mulata como empregada e a branca como patroa. Ou representar o negro como subdesenvolvido e com problemas de subsistência. Isso só mantém o status quo da coisa. Para melhorarmos precisamos ver os oprimidos sendo empoderados. Isso, tecnicamente, é necessário para evoluirmos socialmente.

A Favorita tenta ir por esse caminho, mostrando mulheres fortes, dominantes e uns caras patéticos e domesticados. Mas no final das contas… de que adianta fazer isso mas não estruturar tecnicamente um bom roteiro, com um arco central, plots bem definidos e tudo que manda a cartilha? A Favorita não quer ser um filme comum, mas acaba sendo ao tentar fugir do tradicional. Na tentativa de ser diferentão também no roteiro, esse aspecto acabou se tornando seu principal problema. E suscitando ainda outros.

Reprodução

Conclusão

Será mesmo que ver representado aquilo que nos engrandece e agrada é algo somente positivo? Será que também não nos aliena, deixando de mostrar outras perspectivas? Seria maravilhoso se só víssemos mulheres poderosas e persuasivas. Mas ainda existem mulheres em situação de abuso moral e físico. E também existem aquelas que ainda são usadas como símbolos sexuais para comentários machistas. E etc., etc. E como vamos representar isso? Ou não vamos? Só vamos mostrar as que venceram, como um belo discurso motivacional?

De certa forma A Favorita traz isso sem querer (ou não). Muitas vezes imaginamos que, ao representarmos o mundo como gostaríamos que fosse, criamos um mundo novo onde tudo aquilo é real. Mas e se essa representação não passasse de uma ilusão e, por trás disso tudo, quem está criando não esteja apenas nos enganando por nos darmos como satisfeitos com uma simples representação?

Ver um filme que te empodera te deixa mais ativo ou mais passivo com a situação toda?

plugins premium WordPress